Entre a ideologia e o (bom) senso comum

O Julgamento de Cristo por Pilatos (1881)
segundo Mihály Munkácsy

Por Igor Andrade – Frat. Laical São Próspero

DEPOIS DE ESCREVER uma série de artigos para "O Fiel Católico" sobre o liberalismo, que terminou com um sobre a Moral e o Senso Comum, senti a necessidade de abordar a relação entre Ideologia e Senso Comum, mas a partir de um ponto de vista teórico-filosófico, ao invés de prático-dogmático. Por se tratar de uma obra de apostolado, tive de me valer de termos mais simples, o que limitou minha explanação e – sinto em admitir – o entendimento do público aparentemente mais erudito, que, junto de mim, me considerou raso e sem fundamento. Longe de uma tentativa de redimir-me com o público, o presente artigo visa abordar o tema titular com maior profundidade e menor probabilidade de erro e má interpretação.

Comecemos abordando o primeiro termo em si mesmo. O que é “ideologia”? Como bem explicou Vitor Matias em seu artigo “Mimetismo Ideológico e Corrupção de Termos”, ideologia é um sistema de ideias acerca da realidade, – mas que não tem ligação direta com a mesma; – são ideias abstratas que não têm por fundamento as coisas objetivas, mas parte de um princípio meramente subjetivo. Ora, quando se confunde o critério subjetivo com o objetivo, têm-se um sério problema de interpretação da realidade. Afinal, a phisis existe apesar do sujeito ou a partir dele? Dependendo de qual for a escolha, as consequências práticas podem ser completamente diferentes... Digamos, por exemplo, agonia, dor e miséria, além de algumas centenas de milhões de inocentes (e talvez alguns culpados) mortos.

Pois bem, olhar para a phisis de maneira objetiva significa dizer que as coisas que são objeto do conhecimento (humano) existem apesar do sujeito. 2+2=4 eu querendo ou não; objectum, do latim, significa “aquilo que é lançado de encontro a”, ou seja, é a realidade que se me apresenta, que se impõe diante do meu intelecto para contemplação. Daí, deriva-se o conceito de verdade das coisas. Respondendo à pergunta que Pilatos faz ao Cristo, “Quid est veritas?” (o que é a verdade?): A verdade é a adequação da mente do sujeito ao objeto (ou, de maneira mais extensiva, à realidade de modo geral).



Por exemplo, a realidade se apresenta ao sujeito de tal modo que ele percebe que o grafite é preto. Quando o sujeito recebe essa informação (através de um processo de conhecimento no qual não me deterei agora), elabora um enunciado que deve ser adequado àquilo que a realidade lhe apresentou, isto é, “o grafite é preto”: tal enunciado é simplesmente verdadeiro. Se o indivíduo, contudo, elabora que “o grafite é branco”, isso incorre numa não-verdade, porque a mente não se adequou à realidade apresentada: tal enunciado é falso.

Para aqueles que rebaixam sua condição racional e se dobram a ponto de acatarem a alguma ideologia ('de esquerda' ou 'de direita', por exemplo), não é esse o modo de proceder, sendo que estes partem de um princípio subjetivo. Subjectum, do latim, significa “aquilo que é lançado debaixo de”, no sentido de “portar”; o sujeito da ação é aquele em quem a ação ocorre: o sujeito belo é aquele em quem a qualidade da beleza reside; portanto, um princípio subjetivo de contemplação da realidade é aquele que parte do sujeito que realiza o ato de contemplar aquilo que se segue a partir dele. Nesse caso, primeiro o indivíduo elabora um enunciado (porque parte do cógito) e, depois, confronta-o com a realidade. Elabora “o grafite é branco” e, a partir disso, procura adequar a realidade objetiva à sua subjetividade; daí o quadro “Ceci n’est une pipe” ('Isso não é um cachimbo') é apenas o começo de uma longa e demorada tragédia na história humana.

O problema começa a aumentar quando este sujeito quer não só contemplar, mas agir objetivamente a partir de seus princípios subjetivos. Assim sendo, na ideologia, não é o sujeito que se adequa à realidade, mas o contrário: é o objeto (real) que deve se adequar ao sistema de ideias acatado pelo sujeito. Confunde-se as noções de objetivo e subjetivo.

O quadro geral do paciente se agrava ainda mais – já estando este a ponto de perder por completo sua sanidade mental – quando, além de confundir as noções de objetivo e subjetivo, ele não nega a verdade. Se a verdade fosse simplesmente negada, ou a postura adotada fosse uma espécie de agnosticismo ('não podemos conhecer a verdade mesma, então cada um age segundo os seus costumes'), os danos à humanidade não chegariam nem aos pés dos que foram infligidos de fato ao longo da história manchada pelas ideologias. A postura adotada pelos ideólogos não foi a de recusar a verdade, mas de recusar que a verdade é a adequação do sujeito à realidade. Foi tomada uma postura mais radical, quando a realidade passou a ter de se adequar ao sujeito. Voltou-se à era pré-socrática e a phisis foi novamente vista como um eterno devir, uma mudança contínua, uma "metamorfose ambulante".

Contudo, deve-se ressaltar que, ao contrário dos pré-socráticos, essa mudança de concepção da realidade pelos ideólogos tem um fim político, escatológico; seu objetivo é o "paraíso" pós-revolução, seja ela uma revolução “de direita” ou “de esquerda”.

Os reflexos de tal falha na concepção da realidade se dão no agir humano. Tal visão justifica tudo: pedofilia, incesto, estupro, zoofilia, genocídios, tortura, aborto, entre outras atrocidades. Não confie no que acaba de ler; leia “A Dialética dos Sexos”, da feminista Shulamith Firestone, e/ou as “Onze teses sobre Feuerbach”, de Karl Marx, onde ele afirma com todas as letras que o que existe de fato são as ações do sujeito, não a realidade objetiva, que seria uma visão burguesa do mundo(!).

“O triunfo da ideologia”, diz Russell Kirk, “seria o triunfo do que Edmund Burke chamou de ‘mundo antagonista’, o mundo da desordem”, o mundo do Caos. O que os ideólogos não percebem – demos-lhes um voto de boa-fé – é que o Caos não gera Cosmos.

Pois bem, vimos até aqui o porquê de a ideologia em si mesma, não importando a direção que toma ('esquerda' ou 'direita') ou o nome que recebe (nazismo, fascismo, socialismo, liberalismo, anarquismo, comunismo, entre outros), é tão nefasta. Agora pretendo mostrar “o outro lado”, o Bom Senso, aquele senso do óbvio, aquele senso que simplesmente não pergunta se a grama é de fato verde, se isso se trata apenas de uma ilusão dos sentidos ou de uma influência da sociedade ou ainda de qualquer outra ideia que não diga respeito ao real objetivo.

Chegará o dia em que teremos que provar ao mundo que a grama é verde
G. K. Chesterton

Gilbert Keith Chesterton
Começo a segunda parte com esse aforismo do "Apóstolo do Senso Comum". Aquele que tratava as trivialidades como tremendas conseguiu sintetizar, inúmeras vezes, problemáticas inteiras em curtas frases. No presente caso, trata-se da problemática do evidente.

Em sua crônica “O Mistério de um Desfile”, Chesterton apresenta uma controvérsia do século XVII acerca da existência do mundo material. Cita o bispo anglicano George Berkeley, que defendia a inexistência da matéria, e seu rival acadêmico Samuel Johnson, que defendia o senso comum:

Johnson [...] não apreciava idéias tão insondáveis como as defendidas por Berkeley e chutou uma pedra dizendo: ‘é assim que refuto a ele!’. Ora, chutar uma pedra não tornaria uma discussão metafísica clara o suficiente; além disso, machucaria. Mas quão pitoresco e perfeito seria se eu atravessasse o gramado na posição alegórica de chutar o bispo Berkeley! Que grupo completo: o grande transcendentalista caminhando com a cabeça entre as estrelas, mas atrás dele o realista coxo vingador com o pé levantado.

“Chutar uma pedra não tornaria uma discussão metafísica clara o suficiente”. – Destaco tal expressão usada por Chesterton porque ela apresenta o maior problema do realismo, o maior problema em estabelecer o Bom Senso como algo que resiste à Ideologia: as coisas mais óbvias e evidentes são as mais difíceis de se explicar. Ao mesmo tempo são fáceis e difíceis de se conhecer.

Ora, isso é muito fácil de se perceber: comece explicando para si mesmo o que é pedra. Todos nós conhecemos pedras de diversos tipos, tamanhos, cores e formatos; mas o que é pedra? Entrando no campo da conduta, que é a Coragem? Não ações corajosas, mas a coragem mesma? Creio que entende o leitor a que me refiro quando faço tais questionamentos. Não vou me deter neste ponto. A provocação tem unicamente o intuito de mostrar que conhecer a realidade em si não é fácil. O problema da Ideologia é que ela percebeu isso, mas é soberba demais para optar pelos dois caminhos que restam: ou se esforçar mais para compreender a realidade, ou se submeter aos afazeres de um ser humano comum e deixar essa difícil e hercúlea tarefa para o filósofo.

É claro que quando me refiro à Ideologia nesses termos, faço alusão à Filosofia de Salão, tão famosa a partir do século XVIII, que não forma filósofos, mas sofistas, demagogos e, no pior dos casos, detentores do poder da fala.

Na obra “Fundamentação da Metafísica dos Costumes”, Immanuel Kant diz:

Não é arte alguma fazer-se compreender do comum dos homens renunciando a todo discernimento meticuloso, mas isso produz também uma mixórdia tediosa de observações mal-alinhavadas e princípios semi-raciocinantes, com o que se deliciam as cabeças insossas, porque sempre serve para conversa fiada, ao passo que as dotadas de discernimento se sentem confusas; apesar de que os filósofos, que enxergam muito bem através desses embustes, preferem se afastar para, só depois de chegar a um determinado discernimento, conquistar o direito de ser popular.

Noutras palavras, é bom falar de tal modo que se entenda por todos, porém isso só deve ser feito depois de um longo trabalho filosófico. Somente depois de se subir à montanha deve-se retornar à caverna; do contrário, o sujeito se torna um demagogo ideólogo, que mais inventa do que conhece sobre a realidade.

Portanto, aos aspirantes a filósofos, digo que estudem como se não houvesse amanhã e que entendam a phisis na qual tudo está inserido; aos ideólogos, sugiro, sem o menor escrúpulo e ao modo mais chestertoniano possível, que chutem uma pedra quando proposições como “as pedras não existem”, ou algo semelhante se lhes passar pela mente.

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1. Phisis ou Physis significa o conjunto de todas as coisas naturais; a palavra também significa 'origem'. Como os gregos consideravam que tudo o que existe é natural, a phisis significa o conjunto de todas as coisas, e 'o problema da physis' é a pergunta sobre a origem e constituição de todas as coisas que existem (N do E).
www.ofielcatolico.com.br

6 comentários:

  1. Os ideólogos dizem que cigarro faz mal, que mata, causa câncer no pulmão, enquanto isso pretendem liberalizar a maconha ou a cocaína, pretendem tornar quadrilhas de narcotraficantes como as FARC que já detém o monopólio do pó no Novo Mundo e os ideólogos, por fim, não veem o sem número de pessoas que fumando pra danar viveram até idade extremamente provecta e outras que nunca fumaram foram lindamente esmagadas em seu orgulho puritano farisaico com câncer nos dois pulmões.

    Já encontrei nas ruas de minha cidade muitas pedras no caminho em forma de trapos humanos aptos a serem chutados para a lata de lixo do esquecimento, mas ainda não vi nenhum de nós fumantes acabarmos tão tristemente como uma reles pedra no caminho de ninguém.

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    1. Uma coisa não tem nada a ver com a outra, um erro não justifica o outro. Muita gente morre de câncer por causa do cigarro sim senhor. Se o governo é incoerente, não é por isso que eu vou fazer apologia de uma droga igual as outras, que faz até mais mal do que muitas outras.

      O post anterior do Igor está explicando bem sobre o puritanismo, mas vc é diferente, você faz apologia de uma coira prejudicial, aí já é outra coisa. Você está errado.

      Aliás, esse post aqui não tem nada a ver com cigarro, você parece que é adorador do cigarro, cultua o cigarro, é devoto do "são cigarro", só pensa nisso?

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    2. Luis meu queridíssimo irmão,

      Você é um ideólogo típico, não vê que 2+2= 4. Tudo bem. Mas por enquanto não encontrei nenhum maconheiro, crackudo ou viciado em cocaína capaz de estudar Filosofia como um Edmund Husserl fumante, Olavo de Carvalho fumante ou ser santo como São João Paulo II fumante ou ser um santo como Santo Afonso Maria de Ligório fumante que decerto que entre uma baforada e outra escreveu um dos poemas de Natal mais lindos que já li em toda a minha vida, aonde ele pede que Nossa Senhora ame a Deus, com su'alma imaculada, como nós outras criaturas homens e anjos bem abaixo d'Ela, jamais conseguiremos amar a Deus tanto quanto Nossa teferida Mãe.

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  2. Mais um excelente artigo! O Fiel Católico cada vez melhor.

    Parabéns Igor e Henrique!

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  3. Já vem o João Emiliano manchar novamente os comentários desse fantástico site fazendo apologia ao fumo?!?!?! Não acredito Meu Deus! Nas últimas postagens quando olho os comentários e vejo logo esta foto com um cigarro digo logo: IHHH SUJOU! Ao invés de comentar o assunto descrito, comenta-se sobre o fumo? Que absurdo! Não resisti e vou fazer um breve, único e último comentário. Não vou me deter a um assunto tão desnecessário.
    O fumo, que é uma drogra, pois possui substâncias químicas que atuam no sistema nervoso central e que alteram a função cerebral, cria um vício tão grande que aliena a consciência, como a da maioria dos viciados. O fumante adora ver outro fumando, principalmente hj que a proporção de fumantes vem caindo, é como se ele pensasse "Não sou só eu" ou "mais um igual a mim", é uma auto afirmação através de outros, daí essa apologia.
    O vício vai além da nicotina. Mesmo quando vc não é dependente da substância, a possibilidade de sentir algum "prazer" já te causa dependência. Só sabe quem já fumou.
    Algumas vezes o início do fim deste vício é quando sentimos na carne, triste fim de muitos, daí a apologia cai por terra. A imaturidade algumas vezes tarda, mas uma hora ela começa a dar espaço à sabedoria da vida, senão vc se torna um ignorante. Temos que evoluir, assim como o Novo Testamento.
    Não vamos deixar que a mancha do pulmão de alguns manchem os comentários deste site!
    Pede pra sair cara!

    André Nunes

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    1. André, querido irmão,

      Salve Maria!

      Achei oportuno falar do fumo em meu comentário primeiro aqui nesse post, por causa da questão da ideologia que não vê a realidade, que quer impor como que um leito de Procusto à realidade. Pare com isso, meu irmão, não seja ideólogo, como a meu ver você parece sê-lo, há decerto bons psiquiatras por aí que podem ajudá-lo. Não vejo alteração alguma de consciência em minha pessoa e nem em fumante algum, jamais vi e jamis o verei e nem você e nem ninguém o verá. Aliás, detesto tudo o que altere a consciência como drogas, bebidas alcoólicas e as missas carismáticas da Canção Nova, Comunidade Shalom e semelhantes, sou tanto pró-Missa Tridentina Santíssima total quanto sou pró-tabagismo total.

      Quanto à imaturidade, bem, houveram fumantes que degustaram da boa e velha nicotina, acionistas como eu fidelíssimos da augusta indústria tabagista, que passaram dos 100 anos de idade na imaturidade, como isso é possível, meu Deus?! Você, meu irmão André, é mais sábio que um homem com mais de 100 anos ou é mais sábio e santo que um Olavo de Carvalho, Edmund Husserl, C.S. Lewis que certamente fumando escreveu "As Crônicas de Nárnia ou "As Cartas do Inferno"?!! Ou você seria melhor do que Santo Afonso Maria de Ligório ou melhor do que um Papa emérito Bento XVI que decerto que entre uma baforada ou outra de Marlboro compôs uma obra que o tornou um mestre nosso de na fé?!!

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