Somos quem podemos ser

A justa medida das coisas e o honesto reconhecimento das nossas capacidades como caminho para a perseverança e santidade


POSSIVELMENTE AQUILO que dissemos, ou boa parte do que expusemos em nosso artigo anterior tenha parecido "bonito" e admirável, talvez até soado "poético" a alguns ouvidos. Não foi esta a nossa intenção. E talvez nada daquilo tenha trazido o consolo que nosso consulente esperava, quando corajosamente confessou que não se sentia à vontade com a ideia de precisar humilhar-se para se aproximar de Deus. E logo um novo comentário surgiu, com a seguinte indagação: "Quem consegue ser tão humilde assim? Todo mundo quer uma 'massagenzinha no ego'"... 

Dizemos que a pergunta feita foi corajosa –, foi também desafiadora para nós –, porque todo honesto buscador de Deus e da sua Verdade deve, sim, fazer as perguntas difíceis, para si e para seus diretores espirituais, pois, como já dizia o jovem poeta: "Quem duvida da vida tem culpa (mas) quem evita a dúvida também tem; somos quem podemos ser (...)"[1].

Parece óbvio, mas teimamos em nos esquecer desta verdade fundamental: somos quem podemos ser, e também na vida cristã é um erro comum não admitir as próprias falhas e/ou defeitos, as próprias dificuldades e dúvidas, as tendências naturais com as quais já nascemos e que nos fazem pender para um ou outro lado, para o bem ou para o mal em determinadas ocasiões. Os que agem assim (não são poucos) muitas vezes assumem para si mesmos um ideal impossível de ser alcançado e procuram viver uma vida irreal, fantasiosa; pior do que isso, depois de muito sofrer, ao constatar que realmente não são capazes de corresponder a essas expectativas altíssimas, terminam por desanimar e abandonar a vida de fé.

É preciso saber quem somos, conhecer as nossas próprias tendências, dificuldades, pontos fortes e fracos. Assim fica mais fácil o aperfeiçoamento na vida de fé. Dentro desta realidade, sabemos bem que alguns cristãos possuem forte inclinação natural ou vocação para o martírio, mas experimentam tremenda dificuldade em praticar a santidade nos atos simples do seu dia a dia. Por amor a Nosso Senhor, seriam capazes de se engajar na mais dura das guerras e entregariam por vontade própria, resignados, seus pescoços à degola; mas não conseguem perseverar na oração diária, só assistem a santa Missa aos domingos e, mesmo assim, vez em quando falham. Outros são piedosíssimos em suas devoções particulares – passam longas horas em oração todos os dias, praticam pesadas abstinências, conhecem de cor biografias de grandes santos, assistem à Santa Missa diariamente – mas não dão testemunho da sua fé quando têm oportunidade. Não defendem a Igreja, não se manifestam publicamente, preferindo calar e abster-se de assuntos "polêmicos". A sua fé só existe na intimidade, flui "de fora para dentro" e não aparece, não se concretiza em atos, gestos e posturas. Não são reflexo de Cristo no mundo e no ambiente que as cerca, como deveriam ser.

Qual é o segredo ou a maneira de ser perseverante na fé, de modo frutuoso e autêntico, evitando uma vida espiritual ao estilo "montanha russa" – em que fases de gloriosas alturas espirituais são sempre seguidas por quedas e recaídas em velhas infidelidades? Como podemos nos preservar no Estado de Graça e cultivar o dom da perseverança, indo além de uma coleção de penosas observâncias que nos são impostas e procuramos inutilmente cumprir, como faz a vítima de obesidade patológica que tenta, inutilmente, seguir uma dieta rigorosa e até consegue perder alguns quilos depois de algumas semanas de heroicos esforços, mas depois acaba por recuperá-los e ganhar ainda mais, quando o inevitável acontece e a tentação das guloseimas vence a disposição em não comer nada além de saladas e filés de frango grelhados – para o resto da vida? Pois bem, que solução os bons médicos vêm encontrando nos últimos tempos para superar este círculo vicioso das dietas alimentares? Simplesmente que o paciente aceite suas próprias limitações e se permita um lanche gorduroso ou uma pequena barra de chocolate, de vez em quando. É preciso reconhecer as limitações do paciente e lidar com a realidade dos fatos. E a prática vem demonstrando que isso funciona bem mais e melhor do que os velhos regimes radicais.



Também na vida espiritual é preciso que o cristão saiba evitar o rigor excessivo para consigo mesmo e que não tente avançar para além do que lhe é suportável nas obrigações que se impõe. Sobre isso falou nosso Senhor à multidão que o seguia e a seus discípulos, dizendo: “Na cadeira de Moisés estão assentados os escribas e fariseus. Observai, pois, e praticai tudo o que vos disserem; mas não procedais em conformidade com as suas obras, porque dizem e não praticam. Pois atam fardos pesados e difíceis de suportar, e os põem sobre os ombros dos homens; eles, porém, nem com o dedo querem movê-los. (Mt 23.1-4).

Sim, todos nós gostamos de um elogio, apreciamos o reconhecimento pelo nosso trabalho, quando nos empenhamos com seriedade e carinho, e um ombro amigo para nos apoiar quando as coisas ficam difíceis é sempre bem-vindo. Essa tal "massagenzinha no ego", de vez em quando, pode nos ajudar a perseverar na luta, sim senhor, e não há nada de errado nisso. Atentem os nossos leitores que não dissemos, aqui, que a vida do cristão deve ser apenas humilhação, um rastejar no pó e cobrir-se de cinzas sem fim. 

Em quase tudo é preciso saber encontrar a justa medida e viver conforme, sem "curvar demais o arco", como disse Sto. Tomás, para que não se quebre, e nem "deixar a corda muito solta", porque desse modo a flecha não pode ser disparada[2]. Entenda-se bem que não estamos aqui a afirmar que, para que possamos perseverar na fé, devamos nos permitir pecar "de vez em quando". Nada disso. Precisamos abominar e odiar o pecado, sempre e todos os dias, e precisamos buscar incessantemente odiar tudo o que nos afasta de Deus, cada vez mais, até o nosso último suspiro. O soldado cristão deve tornar-se exímio na arte de odiar o pecado. O que dizemos é aquilo que a Igreja sempre disse: que há tempo para rir e para chorar; para festejar e para jejuar, "tempo de prantear e tempo de dançar" (Ecl 3,4).

Retomando então, brevemente, o tema já contemplado, por que, oh, Deus, precisamos nos humilhar? Por que o Senhor Deus do Amor e da infinita Misericórdia haveria de querer que nos humilhemos? Aprofundemo-nos ainda mais no problema: não fomos nós feitos à imagem e semelhança do Criador? Deus não é Pai? E esse Pai Todo-Poderoso não nos amou tanto a ponto de entregar seu próprio Filho Unigênito para que, por meio dEle, alcançássemos a vida plena e a perfeita felicidade? Não seria, então, melhor ou mais frutuoso para todos nós se tivéssemos a certeza de cumprir a Vontade de Deus apenas obedecendo a uma série de rituais, com tranquilidade e confiança despreocupada? E não seria melhor ainda se fôssemos, por isso, honrados perante o mundo? Não seríamos, assim, simplesmente felizes? E não seria esta a forma de adoração mais natural e aceitável ao nosso Criador? Por que a necessidade da humilhação?

Ser honrado e ser feliz por cumprir a Vontade de Deus é, sem dúvida, o culto mais perfeito; assim sempre foi o culto dos anjos; assim é agora a adoração dos espíritos dos justos que se tornaram perfeitos, no Céu; assim será a adoração de todos os glorificados depois da ressurreição geral. Aqui estamos, porém, tratando do estado real do homem enquanto neste mundo. Considerando o que é o homem, qualquer tipo de doutrina que não o conscientize da própria finitude e dependência de uma Força externa – Deus – e que não o advirta quanto aos pecados e pela incapacidade de ser feliz, perfeito e suficiente pelas suas próprias forças, simplesmente não é verdadeira. Qualquer regra de vida que procure tornar o homem satisfeito consigo e por si mesmo, sem temor, sem inquietação, sem noção da própria dependência, é enganosa; é como o resultado de um cego guiando outro cego: como vimos, assim foram sempre as religiões pagãs.

Por isso o Cristo disse: "Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos Céus"; a palavra "pobre", nesta passagem, está relacionada ao vocábulo aramaico anya (hebraico ‘ani’) e significa "miserável, pedinte, suplicante, humilde". Trata-se de uma exortação para que sejamos como “mendigos perante Deus”, como alguém que nada possui e se aproxima do Rei para simplesmente pedir, sem ter nada para oferecer em troca. Não é humilhação no sentido negativo, mas puramente prático. Se nos consideramos ricos, então já não precisamos de Deus; somos autossuficientes.

Mas há uma outra analogia utilizada por Nosso Senhor que se traduz mais conveniente para os nossos tempos: somos como crianças pequenas, ou mesmo bebês de poucos meses de vida, que dependem integralmente dos pais, para se alimentar, hidratar, medicar, proteger do frio, manterem-se limpos e abrigados, etc. Também por isso o homem Jesus ousou chamar ao Temível e Poderoso Senhor dos Exércitos apenas "Abba", que quer dizer, simplesmente, "Papai"...

Ó Farol Luminoso do Amor, eu sei como chegar a Ti; encontrei o segredo de me apropriar da Tua Chama! (...) Compreendi que o Amor engloba todas as vocações, que o Amor é tudo! (...) Como estou longe de ser conduzida pela via do temor, sei sempre encontrar o meio de ser feliz e aproveitar de minhas misérias...
(Santa Teresa do Menino Jesus
e da Sagrada Face)

Se aceitamos que a condição mínima de Jesus para quem deseja segui-lo é renunciar a si mesmo e dedicar-se em primeiro lugar a segui-lo, sem reservas, e se compreendemos e assumimos que de fato Deus é Amor, então entenderemos que o caminho para a felicidade é também o caminho do Amor. O Amor às vezes é difícil, exige sacrifício, renúncia, maleabilidade, docilidade para aceitar aquilo que não compreendemos... E é só assim que crescemos. Sim, o ser humano nasceu para ser feliz, embora o mundo não entenda nada de felicidade, na medida em que a confunde com riquezas, sensações fúteis e posses.

Deus é a Fonte da felicidade. Por favor, leitor, pare e medite sobre esta realidade profundíssima capaz de transformar radicalmente e definitivamente a sua vida, e lhe garantir a salvação eterna: Deus é a Fonte da felicidade – e da honra, e da glória, e o caminho certo para a realização humana. Ele não quer que soframos, mas que nos preparemos para viver a felicidade eterna. Nossas provações temporárias são menos que sombra de sonhos diante da Eternidade de bem-aventurança que nos espera. O segredo da felicidade está em “deixar” Deus ser Deus em nossas vidas, não somente aceitando, mas modelando-nos e alinhando-nos, a cada dia, à sua santa Vontade.

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Notas:
1.
GESSINGER, Humberto. 'Somos quem podemos ser', álbum 'Ouça o que eu digo: não ouça ninguém', 1988.

2. Suma Teológica, II-II, q. 168, a. 2.
www.ofielcatolico.com.br

2 comentários:

  1. Bom dia; Parabéns pela ótima colocações. Helena

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  2. Que maravilha de explicação. Obrigada. Deus abençoe a todos. Jacqueline

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