Leigo tem que calar a boca? Qual o seu papel na guerra entre conservadores e tradicionalistas católicos?

Santa Catarina de Alexandria, LEIGA, retratada por Vicente Carducho pisando a cabeça do Imperador Maxêncio, que ordenou o seu martírio. Pisá-lo simboliza a vitória da Fé sobre a perseguição pagã e o poder terreno — por uma cristã leiga.


NÃO VEJO ASSUNTO mais importante que este, no momento presente. Vejo com muita clareza que estamos vivendo um momento chave na história da Igreja, e que chega rápido o momento em que essa cisão mal-disfarçada entre luz e trevas no seio do Rebanho de Cristo vai ficando mais e mais nítida, o abismo cada vez mais profundo e, muito em breve, a continuar assim, não será mais possível contorná-lo; a convivência entre esses opostos vai se tornando insuportável e algo realmente importante deve acontecer logo: será impossível ao verdadeiro católico continuar "vivendo de aparências".
    Pela graça do bom Deus, cada vez mais sacerdotes, inclusive incentivados por apostolados leigos, têm ajudado os fiéis comuns a entenderem a real gravidade da situação aberrante em que nos encontramos. Urge que uma grande massa de católicos de boa vontade, mas ainda perdidos, que custam a compreender a gravidade da crise e, especialmente, as suas origens, desperte do seu longo sono e compreenda o seu importantíssimo papel para a restauração da santa Igreja.


    "Rezemos", dizem muitos, e estão certos: as súplicas insistentes e honestas, de católicos fiéis em estado de graça, podem mover Nosso Senhor a abreviar o sofrimento da Igreja. Mas muitos ignoram que também podemos e devemos assumir, como cristãos católicos devotos, um papel mais ativo nesse momento dramático.

    A maioria ignora que o próprio catecismo promulgado em 1992 garante aos fiéis católicos o direito e até lhes imputa o dever de manifestarem as suas opiniões e os seus anseios aos seus pastores, e não só aos pastores como também publicamente, aos outros leigos, em caso de necessidade. Não vejo como a necessidade da Igreja poderia ser maior do que esta que temos agora. 

    Historicamente, ao contrário do que muitos pensam, mais do que somente rezar, os leigos sempre desempenharam um papel ativo e realmente fundamental na resolução das grandes crises da Igreja. Isso daria tema para uma grande série de conferências, mas citemos aqui, de modo rápido e resumidamente, um dos exemplos mais contundentes nesse sentido, que foi aquele exercido pelos leigos durante uma  das maiores crises da história da Igreja, motivada por uma heresia à qual a maior parte do clero aderiu naquele momento.

    Tenho repetido aqui a passagem em que Nosso Senhor diz aos fariseus escandalizados diante do povo que o saudava ativamente no Domingo de Ramos: "Se estes se calam, as pedras clamarão" (Lc 19,40). Se "estes" — os fariseus e seus sacerdotes —, voltam as costas à própria Verdade encarnada e se calam, então "as pedras" — os pobres leigos, os humildes, os simples que mantém a Fé verdadeira e que reconhecem essa mesma Verdade quando a encontram —, clamarão. Foi exatamente isso o que aconteceu muitas vezes, como nos tempos da grande crise ariana (
séc. IV), a única que podemos comparar ao momento presente — e que (diga-se de passagem) está muito bem retratada, com base nas fontes primárias, na obra do prof. Lucas Lancaster intitulada "Santo Atanásio e a Crise Ariana" (CDB, 2022), uma leitura que recomendo vivamente a todos os interessados no assunto. 
         De fato, durante a crise ariana, os leigos tiveram um papel totalmente significativo, lado a lado com os bispos fiéis e os bons teólogos, cada qual atuando segundo a sua capacidade e a sua dignidade próprias. A participação dos leigos foi crucial em vários momentos importantes, especialmente em Alexandria, onde o apoio popular a Santo Atanásio e à verdadeira Fé da Igreja fez grande diferença e como ficou registrado nos escritos de Santo Atanásio, e dos historiadores Sozomeno e Sócrates Escolástico.
    • Em Alexandria, os leigos, especialmente o povo comum, eram fortemente leais a Atanásio e à ortodoxia da Doutrina, contra o arianismo. Não havia esse pensamento de "não podemos falar mal dos bispos", ou "leigo tem que obedecer e ficar quieto em qualquer situação", como tristemente vemos hoje.

    • Os leigos frequentemente se opunham às decisões dos sínodos dominados por arianos, que tentavam depor bispos nicenos e impor bispos arianos ou arianizantes. Essa resistência era expressa por meio de protestos, petições e até ações diretas. Em várias cidades, os leigos apoiavam os bispos fiéis injustamente exilados, escondendo-os e ajudando concretamente na manutenção da resistência contra a fortíssima influência ariana.

    • A crise ariana, essencialmente teológica, em certo momento sofreu também influências políticas, com imperadores como Constâncio II e Valente apoiando o arianismo em certos momentos. Os leigos, especialmente nas grandes cidades como Alexandria, Antioquia e Constantinopla, frequentemente se envolviam em manifestações quando bispos arianos eram impostos. Esses movimentos, por vezes, acabaram até em tumultos. Católicos verdadeiros não são pacifistas, embora busquem resolver tudo pacificamente, não se acovardam nem se escondem quando a defesa da Fé está em jogo.

    • Esses conflitos refletiam a profunda divisão teológica e às lideranças ortodoxas como Atanásio, que representavam a continuidade da Tradição apostólica.

    • Os leigos se organizavam em igrejas locais para resistir às mudanças impostas por autoridades arianas, que eram vistas como a autoridade legítima na época — exatamente como hoje vemos bispos destacados e favorecidos por Papas ensinando pautas avessas à Fé católica verdadeira. Em muitos casos documentados, eles se recusavam a participar de liturgias conduzidas por bispos arianos ou a aceitar clérigos que rejeitassem o Credo de Niceia.

    • Em Alexandria, monges e ascetas, que muitas vezes eram leigos eles próprios, tinham forte influência sobre o povo e também lutavam (às vezes literalmente) ao lado de Santo Atanásio, ajudando a manter a resistência contra a heresia infiltrada no seio da Igreja.

    Dentro deste cenário, um dos episódios mais notáveis foi o ocorrido justamente em Alexandria, por volta do ano 356, quando as autoridades imperiais tentaram impor Gregório de Capadócia, bispo adepto da heresia ariana, como substituto de Atanásio, que havia sido deposto e exilado pelo imperador Constâncio II (qualquer semelhança com o que temos visto em nossos dias, com padres e bispos fiéis sendo punidos e afastados, e maus padres e bispos sendo promovidos e incentivados, não é mera coincidência: a situação histórica é realmente muito semelhante). Esse evento é descrito por Atanásio em sua Apologia contra os arianos e na História dos Arianos, além de ser mencionado por historiadores como Sozomeno.     Em 356, Atanásio fora forçado a fugir de Alexandria devido à pressão imperial e à violência inclusive física dos arianos. Gregório de Capadócia, apoiado pelo Imperador, foi enviado para tomar posse da sé de Alexandria. A população de Alexandria, leigos majoritariamente fieis a Santo Atanásio, entendia bem que Gregório, mesmo que fosse um bispo, superior a eles hierarquicamente, era um herege, já que defendia uma heresia que negava a plena divindade de Cristo.

    Assim, quando Gregório tentou assumir o controle das igrejas de Alexandria, os leigos, junto com clérigos fiéis a Atanásio, organizaram uma forte resistência concreta. Reuniram-se — insistimos, os leigos, que não pensavam que tinham que se submeter a ordens injustas da hierarquia superior — em grande número, e ocuparam igrejas e ruas, e assim impediram fisicamente a posse de Gregório.     Segundo as fontes primárias, a resistência incluiu protestos públicos, confrontos com as forças imperiais enviadas para apoiar Gregório e até barricadas nas igrejas. Infelizmente, a situação saiu de controle e escalou até a violência, com relatos de soldados e partidários arianos atacando os cristãos nicenos. Mesmo assim os leigos mantiveram sua posição e um herege não pode ser empossado.     Essa situação lembra aquela ocorrida recentemente, com os leigos do CDB que se colocaram em uma igreja para rezar o Rosário, durante uma celebração sacrílega, e foram violentamente enxotados, até fisicamente agredidos, inclusive com a participação do pároco? Pois é, e ainda tem quem ache que são eles os "luteranos" e os "cismáticos" da história... Mas se fossem realmente luteranos, então estariam sendo abraçados e tratados como iguais, não combatidos com todo o rigor.     Voltando à tentativa de posse do bispo herege em Alexandria, Santo Atanásio relata que o povo local, incluindo mulheres e jovens, participou ativamente naquele evento, demonstrando uma fidelidade exemplar nessa mobilização comunitária impressionante. Aos brados, eles traziam palavras de ordem em defesa de Santo Atanásio e da Fé católica, recusando-se a aceitar um bispo adepto da heresia, indo contra o Imperador e se expondo ao perigo do martírio!     Mas esse não foi um caso isolado durante a crise ariana. Em outras cidades, como Antioquia, os leigos também resistiram à imposição de bispos arianos, embora com menos sucesso devido à poderosa repressão imperial. Durante o Sínodo de Alexandria (362), após o seu retorno do exílio, Atanásio convocou a participação indireta de leigos, que ajudaram a pressionar pela reafirmação do Credo de Niceia — o Credo tradicional da santa Igreja.     Apesar de toda a pressão e indo contra a orientação da maioria absoluta dos bispos, os leigos mantinham-se fiéis à liturgia e à Doutrina autênticas da Fé católica em suas práticas, não só de modo particular e recolhidamente, mas publicamente, recitando o Credo e resistindo por todos os meios ao seu alcance contra a alterações doutrinárias impostas pelos hereges arianos.

    O papel dos leigos na crise ariana demonstra que a luta contra o arianismo não foi apenas uma questão de debates teológicos entre clérigos, mas também foi influenciada por uma forte mobilização popular. A lealdade do povo aos bispos fiéis à Tradição Apostólica foi essencial para a sobrevivência da ortodoxia, especialmente nos momentos em que os bispos tradicionais estavam sendo impedidos, exilados ou sofrendo forte pressão, inclusive ameaças de morte. A resistência que estes nossos heroicos irmãos exerceram nos dá o claro exemplo de como os leigos podem desafiar até mesmo os maiores poderes quando motivados pela verdadeira Fé.     A crise da heresia ariana, porém, não representa o único momento importante em que os leigos tiveram atuação fundamental na resolução de graves problemas no seio da Igreja. Como este artigo já fica demasiado longo, encerraremos apenas citando outros momentos dramáticos, como a Revolução Francesa, quando os leigos se posicionaram fortemente ao lado dos padres chamados "refratários", que se recusaram a assinar a famigerada Constituição Civil do Clero (julho de 1790), que visava subordinar a Igreja ao Estado revolucionário francês, e boicotando os padres "juramentados". Há uma passagem particularmente interessante retratando essa situação na biografia de João Batista Maria Vianney, o Cura D'Ars[1].
    Outro exemplo 
excelente remete ao século V, o que demonstra que, desde o início, foi costume na Igreja que os leigos participassem ativamente dos seus processos mais importantes: nosso Patrono, São Próspero de Aquitânia (que viveu aproximadamente entre 390 e 463 d.C.), sendo leigo, foi um mestre do clero do seu tempo, com uma atuação especialmente decisiva contra a grave heresia pelagiana. Ele chegou a ditar ao Papa São Leão Magno suas Cartas contra Eutiques, que são documentos teológicos fundamentais daquele tempo. Por fim, a luta contra as heresias monofisita, pelagiana e semipelagiana foi finalmente vencida, durante o Concílio de Orange (529), cujas decisões, particularmente em seus capítulos 9 a 25, foram tomadas em grande parte do Liber Sententiarum ex Augustino Delibatarum, de São Próspero de Aquitânia: um leigo foi um dos protagonistas (junto com São Cesário de Arles) na superação de graves heresias.

    Poderíamos citar ainda muitos outros exemplos semelhantes, como São 
Paulino de Nola (c. 354–431), Santa Catarina de Alexandria (séc. IV), Santa Catarina de Siena (1347–1380), Santa Joana D'Arc (c. 1412–1431), São Thomas More (1478–1535), Bartolomeu de las Casas (c. 1484–1566), etc. Lembre-se dessas lutas heroicas empreendidas por leigos fiéis e valorosos, leitor, antes de dizer coisas como: "Calem a boca, vocês são apenas leigos, respeitem os bispos", ou "Como leigos só podemos rezar" ou ainda "não nos cabe criticar decisões do papa" e outras coisas assim. Rezemos e trabalhemos pela restauração da Santa Igreja. 

    Por fim, tenhamos cuidado também com padres que se apresentam como grandes santos e paladinos da tradição em suas batinas, mas diante das crises e das ameaças dos inimigos de Cristo, retrocedem, encolhem-se e ficam mudos, atacando, ao contrário, quem luta pela restauração da Igreja. Se estes se calam, as pedras clamarão!


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_______
[1] 
TROCHU, Cônego Francis. O CURA D’ARS: São João Batista Maria Vianney, Patrono Oficial dos Párocos (1786-1859). II. Edição. Petrópolis: Vozes, 1960, pp. 20-22. _______ Fontes históricas para este artigo: ATANÁSIO, História dos Arianos (Patrologia Graeca, vol. 25). SOZOMENO, História Eclesiástica (livro 4). PAULINUS, Epistulae e Carmina (Patrologia Latina, vol. 61); Dennis Trout, Paulinus of Nola (1999). CATARINA, Cartas (ed. moderna por Suzanne Noffke); Thomas Luongo, The Saintly Politics of Catherine of Siena (2006). VORAGINE, Jacopo de, Legenda Aurea (trad. moderna por William Granger Ryan, 1993).
WALSH, Christine. The Cult of St. Catherine of Alexandria in Medieval Europe (2007).
Procès de Jeanne d’Arc (Atas do julgamento, ed. Pierre Tisset). PERNOUD, Régine, Joan of Arc: By Herself and Her Witnesses (1964). MORE, Utopia e Dialogue Concerning Heresies. ACKROYD, Peter, The Life of Thomas More (1998). GUTIÉRREZ, Gustavo. Las Casas: In Search of the Poor of Jesus Christ (1993).

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