UM DOS GRANDES mistérios da Teologia judaico-cristã sempre foi e permanece sendo a existência do mal, – sendo possivelmente o maior de todos estes a angustiosa questão: "Por que e como pôde Deus, sendo Bom, ter permitido o seu surgimento?" – Além disto, saberíamos explicar como, quando e onde surgiu o mal? Dois fatos a respeito deste tema espinhoso, porém, são claros: 1) o mal existe e 2) ele será (demos graças a Deus) derrotado.
Textos como os de Ez 28,12-15 e Lc 10,18 indicam que houve uma rebelião liderada por um poderoso anjo de luz (Lúcifer), que, exercendo o seu livre arbítrio, optou pelo não-bem e pela ruptura da Comunhão com o Criador, tendo sido seguido por outros anjos. Deus cria um lugar-estado (Inferno) e lá os exila (2Pd 2,4).
O chefe desses anjos caídos é denominado Satanás (que em hebraico quer dizer = adversário), porém é chamado também por outros nomes, como: Belzebu, Belial, "demônio", "o maligno", o "príncipe deste mundo", "diabo", (que em grego quer dizer = instigador, acusador).
Satanás, assim, lidera um exército de demônios que, por sua vez, possuem as seguintes características:
1. São seres espirituais com personalidade própria e inteligência. Como súditos de Satanás, são inimigos de Deus e dos seres humanos (Mt 12,43-45);
2. São malignos, destrutivos, desejam o mal e a perdição das almas;
3. São numerosos (Mc 5,9; Ap 12,41).
Eles mantêm forma angélica, mas com natureza voltada para o mal. Possuem inteligência e conhecimento, mas não podem conhecer os pensamentos íntimos dos homens e nem obrigá-los a pecar. Há autoridade e organização no mundo inferior-ínferos (Mt 25,41), mas por não ser Satanás onipresente, onipotente ou onisciente (atributos exclusivos de Deus), ele age por delegação a seus muitos demônios (Mt 8,28; Ap 16,1-14).
A Teologia cristã tem definido, a partir do testemunho das sagradas Escrituras e da experiência histórico-pastoral, os seguintes ministérios demoníacos:
a) Indução à desobediência a Deus e aos seus Mandamentos;
b) Propagação do erro e das falsas doutrinas;
c) Indução à mentira (o demônio é o 'pai da mentira') e à corrupção;
d) Provocação de rebeldia nas pessoas que sofrem provações;
e) Influência negativa sobre o corpo, os sentidos e a imaginação;
f) Sugestão para o uso indevido dos bens materiais (apego vs. perda);
g) Realização de efeitos extraordinários, com aparência de milagres (o que explica muitos fenômenos inexplicados ocorridos em seitas heréticas e mesmo anticristãs);
h) Indução a sentimentos negativos, como o medo, a inveja, a angústia, o ódio, o desânimo;
i) Promoção da idolatria, da superstição, da necromancia, da magia, do sacrilégio e do culto satânico.
O mal esteve agindo pelo Pecado Original (Queda do homem), e exerce continuamente a sua obra perversa até o fim dos tempos, como tentador (Gn 3,1-5), caluniador (Jó.1,9-11), causador de enfermidades (Jó 2,7) e enganador (Mt 4,6).
Ele mantém permanente luta contra Deus e seus eleitos, procura desviar os fiéis de sua lealdade a Cristo (2Cor 11,3), induzindo-os a pecar e a viver segundo os sistemas elaborados pela natureza corrompida ou “segundo a carne” (1Jo. 5,19).
Os cristãos devem procurar conhecer, pelo estudo da Teologia, a natureza e o ministério do mal, para que se conscientizem e possam se precaver.
São Paulo Apóstolo nos exorta a buscar o fortalecimento espiritual em Deus e no seu Poder, resistindo firmes, pois “não é contra homens de carne e sangue que temos de lutar, mas contra poderes e autoridades, contra os príncipes deste mundo de trevas; contra as forças espirituais do mal nas regiões celestiais” (Ef 6,12).
A disciplina devocional, a frequência nos Sacramentos, a oração, a leitura orientada da Bíblia sagrada, a busca da santidade, o desenvolvimento dos dons que recebemos do Espírito Santo, a comunhão do Corpo de Cristo, são, – especialmente este último, – infalíveis antídotos contra o mal.
O ministério demoníaco contra as pessoas pode se dar de três maneiras:
a) Tentação: apoio a opções negativas, no que atinge todos os seres humanos;
b) Indução: (também chamada obsessão), uma ação mais íntima e contínua, que atinge os descrentes e os crentes de tendência carnal;
c) Possessão: quando os demônios se apoderam de corpos, controlando-os. Há alguma controvérsia em se definir se isso não pode acontecer a um cristão devoto e santificado. Geralmente isso não pode ocorrer em um corpo que já é habitado pelo Espírito Santo, a não ser em casos muito específicos, quando os próprios santos se submetem a esse tipo de tormento para a própria purificação, para o bem das almas ou com algum outro fim específico.
Satanás e os demônios têm poder sobre as almas perdidas, nesta vida e após a morte, que se destinam ao inferno.
Um ponto importante que precisa ser inserido no estudo deste tema. Devemos estar advertidos para não cair no dualismo de fundo zoroastrista: Satanás não é um 'ente contrário' comparável a Deus, isto é, não existem "duas forças" cósmicas antagônicas que controlam o Universo, como na cosmogonia pagã que prega uma suposta necessária "harmonia" entre bem e mal / luz e treva / yin-yang (taoísmo). Deus é Absoluto em si mesmo, e o mal uma consequência da total liberdade dada aos anjos.
O mal absoluto, em sentido absoluto, não existe, pois o mal não existe por si só. O mal é a ausência de Bem, isto é, ausência de Deus, que é o Sumo Bem. Deus não criou o mal. O mal que vemos no mundo é o resultado da falta de Deus. Assim como a escuridão é a ausência de luz, o que chamamos mal, – e experimentamos como tal, – é apenas a ausência do Bem/Deus.
Quem combate contra Satanás não é Deus, como numa tremendíssima batalha espiritual transcendental entre o lado luminoso e o lado trevoso de uma Força ainda maior e superior às suas próprias polaridades, mas sim o Príncipe das milícias de anjos fiéis: são os anjos bons que combatem os anjos maus.
Assim, não devemos nem minimizar e nem maximizar o ministério do maligno: por um lado, já foi derrotado na cruz, e o Sangue de Cristo, Cordeiro de Deus, tem poder para defenestrá-lo definitivamente; a Obra da expiação já foi consumada, o Cristo Salvador já ressuscitou e o Espírito Santo já foi enviado. O resgate já se deu, oferecido pela Graça e recebido pela fé. O Senhor já reina sobre o Universo, a História e sua Igreja. Podemos e devemos estar confiantes. Por outro lado, não convém ignorar ou desprezar o perigo de cair em tentação, o que em última análise pode nos levar a perder nossas almas e a salvação eterna. O nosso inimigo sabe ser sutil e procura nos vencer por muitos meios, com "embustes e ciladas", como dizemos na oração a São Miguel Arcanjo.
A perfeição da Ordem Criada ('Éden') será revivida na Ordem Restaurada ('Nova Jerusalém'). O mal terá, enfim, um fim, quando Satanás e seus demônios forem todos lançados no "lago do fogo" (Mt 25,41), também chamado “segunda morte” (Ap 20,14), este segundo um título mais assustador para quem compreende o seu significado. A primeira morte é como que ilusão, não é morte de fato, pois nossas almas são eternas. Já a segunda morte é condenação definitiva, é o fim de toda esperança, é garantia de uma eternidade de pavoroso sofrimento.
Devemos, ainda, evitar cair na sutil tentação da irresponsabilidade moral dos que atribuem aos demônios todos os males que, de fato, são frutos de sua opção livre. Não sejamos, neste sentido, ”caluniadores de Satanás”, e assumamos as nossas culpas batendo no peito e clamando: "Pequei por minha culpa, minha culpa, minha máxima culpa". Quase sempre é possível evitar a queda, se realmente quisermos, com grande vontade, se resistirmos, se pedirmos por forças a Deus.
Posturas – O racionalismo e o liberalismo teológico haviam negado a existência de Satanás e dos demônios. A Teologia clássica (assim como com os anjos bons), afirma a sua existência, mas é bem verdade que pouco elabora na prática, para o cotidiano dos fiéis. O pós-pentecostalismo e a chamada “teologia da batalha espiritual” os vulgarizou e hipertrofiou seu poder, além de, em uma atitude irracional, anti-científica e anti-bíblica, atribuir tudo aos mesmos. Mas ao fiel católico convém conhecer bem a questão, – sem indiferenças, sem irresponsabilidade, sem angústia opressiva.
Devemos também rejeitar aquelas representações pictóricas aterradoras (fruto da imaginação de artistas, alguns brilhantes, outros medíocres, outros desequilibrados, mas sempre elaborações humanas). De fato, o mal está bem longe de ser incompetente nas artes que hoje chamaríamos “marketing pessoal” ou “relações públicas”. Na maioria dos casos, o inimigo prefere ostentar sedutora beleza, realizar prodígios e até aparentar bondade. Se o diabo se mostrasse feio, assustador, quem lhe daria ouvidos?
O mal que nos tenta pode estar em nosso caráter, em nosso temperamento, em nossos hábitos inatos ou adquiridos.
Outro ponto importante a se lembrar é a nossa obrigação, enquanto cristãos, de evitar o dualismo de fundo bramânico (hinduísmo, adotado pelas heresias de fundo gnóstico) entre a alma, supostamente sempre boa, e o corpo, supostamente sempre mau. O ser humano foi criado integrado, caiu integrado e é restaurado integrado. O termo “carne”, na Bíblia, não tem significado igual ao de "corpo", mas de natureza caída. Jesus Cristo assumiu nossa carne e foi sempre livre do pecado; os anjos malignos não têm carne, mas vivem em pecado.
A Palavra de Deus –, nosso Senhor Jesus Cristo –, que se manifesta em sua Igreja, e o Espírito Santo de Deus, que nos guia interiormente, vão nos libertando de condicionamentos e nos forjando como “novas criaturas”. A presente ordem, bem como o poder do mal, são transitórios. Nossa esperança é em última análise escatológica, isto é, esperamos o que virá depois, quando este mundo passar, “pois a antiga ordem já passou” (Ap 21,4b).
Com o ocaso da modernidade, vão-se os seus mitos: a "bondade natural", o "progresso", a "supremacia da razão" ('ciência'), as utopias sociais e globais. Volta aquilo que nunca passou: a ambiguidade moral (e o pecado), os avanços e as decadências, a sensação de limitação nos empreendimentos e instituições humanos, e a redescoberta de tudo o que vai além da razão no ser humano: o místico, o estético, o erótico, o lúdico, o intuitivo, etc. São essas forças que comandam nossas vidas.
Há uma redescoberta do antes desvalorizado. A construção do futuro, porém, não se faz com um mero retorno ao passado (que tinha também os seus males). O angélico e o demoníaco voltam como temas e realidades, mas é preciso vencer, os sincretismos e as superstições, inclusive aquelas ditas "evangélicas”, que são estranhas ao espírito da Igreja. Nem o reducionismo psicanalítico, nem o reducionismo dos “cultos de descarrego”.
A consciência do místico, do transcendente e do espiritual, não nos leva à alienação da História e das nossas responsabilidades como cidadãos e pessoas plenas. Pois o bem e o mal, com as suas potestades, se relacionam com os poderes políticos e históricos, como procurou demonstrar Santo Agostinho de Hipona com sua “Cidade de Deus”.
Em Nome do Pai e do Filho e do Espírito Santo; que os santos Anjos, aqueles fiéis ao SENHOR, acampem ao nosso redor e nos guardem para a vida eterna. Amém!
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Ref:
Adaptado do artigo do Revmo. Pe. Felice Pinelli, vulgo 'Padre Felix', 'Uma demonologia bíblica', disp. em:
http://padrefelix.com.br/anjos28.htm
Acesso 3/3/016
www.ofielcatolico.com.br