Fé e preconceito

OUTRO INSPIRADO SERMÃO do Bem-aventurado Cardeal Newman, este sobre o capítulo 16 do Evangelho de Mateus (22), vem com grande propriedade e profundíssima sabedoria esclarecer-nos quanto às dificuldades e exigências inerentes à sempre necessária virtude da Fé (a primeira virtude teologal), pois "sem fé é impossível agradar a Deus" (Hb 11,6).


John Henry Cardeal Newman

Sermão proferido aos 5 de março do ano do Senhor 1848

Temos no Evangelho desse dia algo que, suponho, suscitou surpresa na maioria dos leitores do Novo Testamento; quero dizer a lentidão dos discípulos para entender que nosso Senhor iria sofrer na Cruz. Isso só pode ser explicado por uma opinião contrária ter possuído suas mentes, o que chamamos de um preconceito forte contra a verdade. Em seus casos, um preconceito religioso honesto, o preconceito de mentes religiosas honestas, mas ainda um profundo e violento preconceito. Quando nosso Senhor declarou isto pela primeira vez, São Pedro disse: “Que Deus não o permita, Senhor! Isto não te acontecerá!” (Mt 16, 22). Falou tão fortemente que o santo evangelista diz: “Começou a interpelá-lo (ao Senhor) e a protestar”. Fez isso por reverência e amor, como a ocasião mostra, mas é evidente pela expressão que ele falou com ardor, com veemência. Imaginem o quão profundo era esse preconceito.

Esse mesmo preconceito representa o que encontramos no Evangelho de hoje. Nosso Senhor disse: “Eis que subimos a Jerusalém e se cumprirá tudo o que foi escrito pelos Profetas a respeito do Filho do Homem. De fato, ele será entregue aos genitos, escarnecido, ultrajado, coberto de escarros; depois de o açoitar, eles o matarão. E no terceiro dia ressucitará” (Lc 18, 31-33). As palavras poderiam ser mais claras? No entanto, que efeito teve sobre os discípulos? “Mas eles nada disto compreendiam, e essas palavras eram-lhes um enigma cujo sentido não podiam entender” (Lc 18, 34). Por que um enigma? Porque eles não tinham olhos para ver.

E assim, novamente, após a Ressurreição, quando encontraram o sepulcro vazio, diz-se: “Em verdade, ainda não haviam entendido a Escritura, segundo a qual Jesus devia ressuscitar dentre os mortos” (Jo 20, 9). E quando santa Maria Madalena e as outras mulheres contaram a eles, “essas notícias pareciam-lhes como um delírio, e não lhes deram crédito” (Lc 24, 11). Consequentemente, quando nosso Senhor apareceu-lhes, “censurou-lhes a incredulidade e dureza de coração, por não acreditarem naqueles que o tinham visto ressuscitado” (Mc 16, 14).

Esse é certamente um estado de espírito muito notável, e o registro dele nos Evangelhos pode servir para explicar muito do que se passa entre nós, colocar-nos em guarda contra nós mesmos e nos sugerir a pergunta: será que estamos em algum aspecto no mesmo estado de imperfeição desses santos, naquela época preconceituosos, discípulos de nosso Senhor e Salvador?

Será bom observar qual era a causa da sua cegueira – era uma falsa interpretação que tinham dado às Escrituras do Antigo Testamento, uma interpretação comum no seu tempo e que tinha sido transmitida a eles pelos escribas e fariseus, que se sentaram no banco de Moisés e que fingiram ensinar-lhes a doutrina de Moisés. Era a opinião de muitos naquele dia que o Messias prometido ou Cristo, que estava para vir, seria um grande príncipe temporal como Salomão, só que maior; que teria um tribunal terrestre, riqueza terrena, palácios terrenos, terras e exércitos e servos, e a glória de um reino temporal. Essa era a ideia deles – esperavam por um libertador, mas pensaram que viria como Gedeão, Davi ou Judas Macabeu, com espada, lança e trombeta ruidosa, causando feridas e derramamento de sangue, e jogando seus cativos em masmorras.

E imaginavam que a Escritura tinha ensinado essa doutrina. Eles tomaram as partes da Escritura que agradavam suas fantasias, em primeiro lugar, e descartavam completamente as que eram contrárias a elas. É certo que Isaías e outros profetas falam de nosso Senhor, então por vir, como conquistador. Falam de Deus coberto com o sangue de seus inimigos e punindo com furor os governantes das diversas nações; como rei e governante com cetro de ferro, e estendendo o seu domínio até os confins da Terra. Também é verdade, porém, que a Escritura fala do Messias de outra forma. Ele é mencionado como o mais rejeitado entre os homens, como um leproso, um pária, um perseguido, cuspido, perfurado e morto. Essas passagens, porém, eles não consideraram. Não deixaram que produzissem efeitos legítimos em seus corações. Ouviram-nas com o ouvido e não com a razão, e por isso era como se não tivessem sido escritas; para eles não foram escritas. Não ocorreu a eles o que essas passagens poderiam significar; o que, ainda assim, significavam. Portanto, quando nosso Senhor disse-lhes que Ele, o Cristo, seria flagelado e cuspido, foram pegos de surpresa, e clamaram: “Longe de Ti, Senhor; impossível que Tu, Senhor da Glória, seja esbofeteado, ferido e morto. Isso não deve acontecer a Ti!”.

Observa que o erro dos Apóstolos e seu horror e rejeição ao que no entanto foi a Verdade Eterna e mais bem-aventurada do Evangelho surgiu a partir de um zelo religioso para com a honra de Deus; embora um falso zelo. Seria bom se o erro semelhante das pessoas de hoje tivesse tão excelente fonte e tão boa desculpa. Pois, assim é, que agora como outrora encontram-se homens que tem a Escritura em suas mãos, em suas memórias e em suas bocas, mas cometem grandes erros quanto ao significado dela, e isso porque têm preconceito contra o seu verdadeiro sentido.

“Falo como a pessoas sensatas”, como diz o Apóstolo; “julgai vós mesmos o que digo...”. Não é assim, meus queridos irmãos? Longe de mim ser severo, mas não é verdade que entre essas pessoas educadas, inteligentes e grandes, há um grande número – ou melhor, a grande maioria – que atribui um falso sentido às Escrituras, e estão violentamente em oposição à verdade por conta dessa falsa interpretação? A Igreja de Cristo caminha sobre a Terra agora, como o Cristo fez nos dias de sua carne, como nosso Senhor cumpriu as Escrituras no que Ele foi e fez então; assim a Igreja cumpre as Escrituras no que ela faz agora. Assim como a vinda de Cristo foi prometida, prevista nas Escrituras como foi outrora, também a Igreja foi prometida e prevista nas Escrituras no que ela é hoje. No entanto, as pessoas de hoje, embora leiam as Escrituras e pensem que as entenderam, como os judeus de então liam as Escrituras e pensavam que as entendiam, elas não as compreendem. Por quê? Porque, como os judeus de então, foram mal ensinadas; receberam falsas tradições, como os judeus tinham recebido as tradições dos fariseus, e estão cegos quando pensam que enxergam, e são preconceituosos contra a verdade, e escandalizados e ofendidos quando ela lhes é dita.

Assim como os judeus ignoraram passagens bíblicas que deveriam tê-los corrigido, assim certos cristãos ignoram passagens agora, que, se compreendidas, iriam tirá-los do seu erro. Por exemplo, os judeus ignoraram os textos: “Traspassaram minhas mãos e meus pés” (Sl 21, 17); “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?” (Sl 21, 2); “Foi desprezado, era a escória da humanidade, homem das dores, experimentado nos sofrimentos” (Is 53, 3), que falam de Cristo. E os homens hoje ignoram passagens como a seguinte, que fala da Igreja: “Àqueles a quem perdoardes os pecados, ser-lhes-ão perdoados” (Jo 20, 23); “Tu és Pedro e sobre esta pedra edificarei a minha Igreja”(Mt 16, 18); “Está alguém enfermo? Chame os sacerdotes da Igreja, e estes façam oração sobre ele, ungindo-o com óleo em nome do Senhor” (Tg 5, 14); “a Igreja do Deus vivo, coluna e sustentáculo da verdade” (1 Tm 3, 15) e similares. Têm eles tanta certeza de que a doutrina da única Igreja Católica não é verdadeira, que não se importam com essas passagens, ignorando-as. Não podem dizer o que elas significam, mas têm bastante certeza de que não querem dizer o que os católicos dizem que significam, porque para eles o Catolicismo não é verdadeiro. Na verdade, um profundo preconceito está em suas mentes, ou o que a Escritura chama de cegueira. Não podem afirmar o que essas passagens e muitas outras dizem, mas eles não se importam. Afirmam que afinal elas não são importantes, e quando são induzidos e obrigados a dar-lhes um significado, dizem qualquer coisa que lhes vem à cabeça, apenas para satisfazer ou para confundir o interrogador, desejando nada mais do que se livrar do que consideram uma pergunta incômoda, mas inútil.

Agora, não é estranho que os que agem dessa forma, que ignoram as coisas nas Escrituras e são conduzidos pelos seus preconceitos e pelo ensino insuficiente que receberam das Escrituras, ainda se vangloriem de serem “bíblicos” e guiados pela Escritura, e usem o seu julgamento particular? Não, eles não julgam, não examinam, não vão pela Escritura; consideram apenas o tanto das Escrituras que lhes convém e deixam o resto de lado. Eles seguem não pelo seu julgamento privado, mas por seu preconceito privado e pelos seus gostos particulares.

Vou acrescentar mais um ponto. Pessoas que agem assim são de tipos de caráter muito diferentes, assim como os que falharam com nosso Senhor quando Ele veio à Terra eram muito diferentes uns dos outros. Ambos, os fariseus de coração duro e os apóstolos de bom coração, foram surpreendidos com a Paixão e Morte de Cristo. Agora, dois tipos de pessoas se sentem ofendidas com a Santa Igreja: alguns são sem esperança, outros esperançosos. A ocorrência mostra isso. Não podemos decidir qual é um e qual é outro, exceto pela ocorrência; mas é assim, alguns são dirigidos cada vez mais longe da Igreja quanto mais veem e ouvem sobre ela, e outros, conforme o tempo passa, são trazidos mais perto dela, e afinal submetem-se a ela.

Sendo esse o estado das coisas, como nós, católicos, devemos nos comportar perante tais pessoas preconceituosas e errantes? Devemos imitar nosso Senhor e Mestre. Ele foi paciente com elas; abundava em paciência. “Não quebrará o caniço rachado, nem apagará a mecha que ainda fumega” (Mt 12, 20). Ele não discutiu, mas calmamente os guiou. Mostrou a eles seus prodígios. Gradualmente os influenciou por suas palavras e por sua graça e, em seguida, os iluminou, até que acreditassem em todas as coisas. E até aquele Apóstolo, que duvidou mais robustamente da sua Ressurreição, clamou: “Meu Senhor e meu Deus!”. Assim temos de fazer agora – assim a Igreja faz agora. O argumento está bem no seu lugar, mas não é o principal. O principal é ganhar o espírito, amolecer o coração, influenciar a vontade. Isso faz a Igreja. Seguindo o padrão do Divino Senhor, nos atrai com laços humanos, laços de amor, com caridade divina. “Tudo espera, tudo suporta”, abre as portas de seus templos, acende seus Altares, exibe o Santíssimo sob o véu sacramental, irrompe em brados de júbilo... Até que a alma rebelde, conquistada, diga com o Patriarca: “Agora, Senhor, deixai o vosso servo ir em paz, segundo a vossa palavra. Porque os meus olhos viram a vossa salvação, que preparastes diante de todos os povos, como luz para iluminar as nações, para a glória de vosso povo de Israel” (Lc 2, 29-32). E, como nosso Senhor, depois de sua Ressurreição, abriu o entendimento dos discípulos para compreender as Escrituras, então agora os corações dos homens são amolecidos e iluminados, e vêem que a Igreja cumpre todas as profecias sobre si mesma, tudo o que está escrito na Lei, nos Profetas e nos Salmos; assim, se prostram e adoram, e confessam que Deus está aqui de verdade.

Bem-aventurados aqueles que assim se prostram em adoração. Bem-aventurados são aqueles levados pela graça de Deus a abraçar a Verdade. Bem-aventurados os que submetem suas mentes às influências suaves do Espírito Santo, e não param até que Ele lhes leve ao Paraíso. Mas, meus irmãos, o que tenho dito não se aplica exclusivamente a este ou àquele grupo de homens, porque pertence a todos nós. Pois não é esse ou aquele homem apenas, e sim todos nós, católicos ou não, que somos conduzidos adiante por Deus de uma maneira maravilhosa – com um caminho de prodígios, um caminho maravilhoso para nós, de maneira impressionante, surpreendente, aos nossos sentimentos naturais e gostos, seja qual for o nosso lugar na Igreja. Como a fé é a graça fundamental que Deus nos dá, então uma prova de fé é a disciplina necessária que Ele põe em nós. Não podemos ter fé sem um exercício de fé.

Isso está implícito na própria passagem que originou as observações que tenho feito. Quando os discípulos retraíram as palavras sobre sua própria Morte e Paixão, o que Ele fez? Encontrou um homem cego e lhe recuperou a vista. Por que deu-lhe esse favor especial? Ele nos diz expressamente: “Tua fé te salvou” (Lc 18, 42). Aqui foi uma repreensão tácita da lentidão em crer que havia em seus próprios discípulos e amigos. “Tudo é possível ao que crê. Esse pobre pária é uma lição para ti, ó meu povo. Ele te envergonha. Teve fé em mim, enquanto tropeças na minha palavra, e quando digo algo, respondes ‘Que Deus não permita isto, Senhor!’”.

O ofício de hoje nos dá outro exemplo da mesma grande lição. A Igreja lê hoje a história do chamado de Abraão, e medita sobre o seu grande ato de obediência, em levantar a faca para sacrificar seu filho. Abraão, nosso pai, é o nosso grande modelo de fé, e sua fé foi testada, em primeiro lugar por ser chamado a deixar o seu país e seus parentes, depois por receber a ordem para sacrificar seu amado Isaac. O primeiro já era muito desafiador, mas que pedra de tropeço a segunda poderia ter sido a uma fé menor do que a dele! Se os discípulos ficaram chocados que o Antítipo divino devesse ser condenado à morte, certamente Abraão viu como causa de escândalo que o seu próprio filho Isaac teria que ser abatido e morto por ele mesmo, por sua mão, pela mão do seu pai! No entanto, ele foi em direção ao cumprimento desse comando: grave, silenciosa, calmamente, como se fosse uma mera ação ordinária. Assim, mostrou sua fé e ganhou a Bênção.

Certifiquem-se, meus irmãos, que este seja o vosso caminho também. Nunca Deus dá a fé, mas sim Ele a testa, e ninguém sem fé pode entrar no Reino dos Céus. Portanto, vocês todos que vêm para servir a Deus, vocês todos que desejam salvar as vossas almas, comecem decidindo que não podem fazê-lo sem uma fé generosa, uma generosa entrega de si; sem colocar-se nas mãos de Deus, sem tentar fazer qualquer barganha com Ele, sem estipular condições, mas dizendo: “Ó Senhor, aqui estou eu, serei o que me pedires, irei aonde quiseres enviar-me, vou suportar o que colocares sobre mim. Não por meu próprio poder ou com a minha própria força; minha força é fraqueza. Se confio em mim mesmo, muito ou pouco, vou falhar, mas se confio em Ti, confio e sei que me ajudarás a fazer o que me chamas a fazer; confio e sei que não queres me deixar nem me abandonar. Nunca me hás de pôr em qualquer provação a qual não vais me ajudar a superar. Nunca haverá uma falha da tua parte, nunca me faltará a tua graça: eu a terei em abundância. Serei tentado; minha razão vai ser tentada, pois tenho que acreditar; meus afetos serão tentados, pois terei de obedecer a Ti em vez de agradar a mim; a minha carne vai ser tentada, pois terei que colocá-la em sujeição. Mas Tu és mais para mim do que todas as outras coisas juntas. Podes compensar tudo que tomares de mim e Tu irás fazê-lo, pois me darás a Ti mesmo. Tu me guiarás”.

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Fonte:
NEWMAN, John Henry. 'Faith and prejudice, and other unpublished sermons'. chapter 'Our Lady and the Gospel'
New York: Sheed & Ward, 1956.
www.ofielcatolico.com.br

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