O Culto dos Santos – parte 1

PARA CONCLUIR COM chave de ouro nossa singela trilogia sobre o culto de adoração, exclusivo a Deus, e a veneração da Virgem e dos santos, nada melhor que a soberba análise de Dom Estevão Bettencourt para a revista "Pergunte e Responderemos" (grande inspiração de nossa 'O Fiel Católico'), n. 348/1991. Segue.


Detalhe da pintura que representa 'todos os santos', por Fra Angelico (1395-1455)

O culto dos Santos, ponto nevrálgico no diálogo entre católicos e protestantes, é justificado pela Tradição cristã mais antiga, apoiada aliás em fundamentos bíblicos pré-cristãos (cf. 2Mc 15,14). O Concílio de Trento o reafirmou, procurando, porém, coibir abusos e mal-entendidos instaurados na piedade católica. O Concílio do Vaticano II reiterou a doutrina da Igreja, pondo em relevo os aspectos cristocêntrico e teocêntrico dessa prática de piedade.

Com efeito, a solidariedade (e os laços de fraternidade) existente entre os membros do povo de Deus não é extinta pela passagem da vida terrestre para a celeste; ao contrário, o amor fraterno que anima os justos nesta vida é liberto de escórias do pecado na outra vida; torna-se, pois, mais ardoroso e genuíno. Deus, que nos fez membros da mesma Comunhão, proporciona aos Santos no Céu o conhecimento das nossas necessidades para que eles possam interceder por nós, como intercederiam na Terra. Essa intercessão quer-nos levar mais a fundo dentro do plano de Deus; é encaminhada para a glória de Deus e o louvor do Redentor; os Santos são totalmente relativos a Cristo; são obras-primas de Cristo, que nos levam, por suas preces e seus exemplos, a reconhecer melhor a grandeza da nossa Redenção.
Vê-se, pois, quanto é entranhada na Teologia católica a devoção aos Santos. Não é obrigatória, mas facultativa; como quer que seja, decorre de lúcida compreensão do plano salvífico de Deus, principalmente no que diz respeito à Bem-aventurada Virgem Maria, Mãe de Deus e Mãe dos homens (cf. Jo 1925-27).


1. A história da questão

O culto de veneração (não de adoração) dos Santos foi até o século XVI prática tranquila e óbvia entre os cristãos. As raízes desta praxe estão já nas páginas do Antigo Testamento. Com efeito, até o século II a.C. os judeus professavam a existência do cheol ou o entorpecimento da consciência dos defuntos, relegados promiscuamente para um lugar subterrâneo; aí estariam incapazes de receber qualquer sanção. No século II, dissipou-se tal noção; aflorou no povo de Israel a consciência de que os irmãos que deixam esta vida mantêm lúcido um núcleo de sua personalidade e vivem como membros da Aliança de Deus com o seu povo; consequentemente, são solidários com os fiéis peregrinos na Terra e intercedem por eles.

É o caso, por exemplo, de Jeremias Profeta, que, falecido no século VI a.C, aparece a Judas Macabeu no século II a.C., juntamente com o Sumo Sacerdote Onias (também falecido), como "o amigo de seus irmãos, aquele que muito ora pelo povo, pela cidade santa, Jeremias, o profeta de Deus" (2Mc 15,14).

No Novo Testamento, esta consciência se fortalece: na epístola aos Hebreus o autor recorda os justos do Antigo Testamento, heróis da fé, e insinua a sua solidariedade com os irmãos ainda vivos na Terra. Com efeito, afirma: "Todos eles, embora pela fé tenham recebido um bom testemunho, apesar disso não obtiveram a realização da promessa. Pois Deus previa para nós algo de melhor, a fim de que sem nós não chegassem à plena realização" (Hb 11,39s).

Logo a seguir, o autor imagina esses justos colocados num estádio como que a torcer pelos irmãos ainda existentes neste mundo; constituem uma densa nuvem de torcedores interessados no bom êxito do certame que nos toca: "Portanto também nós, com tal nuvem de testemunhas ao nosso redor, rejeitando todo fardo e o pecado que nos envolve, corramos com perseverança para o certame que nos é proposto" (Hb 12,1).

Diz a propósito a Bíblia de Jerusalém, em nota de rodapé a 2Mc 15,14: "Esse papel conferido a Jeremias e a Onias é a primeira atestação da crença numa oração dos justos falecidos em favor dos vivos". Corremos, pois, acompanhados por testemunhas que nos querem ver vitoriosos como eles foram.

Consciente disto, já nos seus primeiros tempos a Igreja começou a prestar veneração particular àqueles defuntos que por sua vida e morte haviam confessado Jesus Cristo. Como relatam as fontes históricas, na segunda metade do século II, firmou-se o costume de haver uma Celebração Eucarística sobre o túmulo dos mártires no dia do aniversário da sua morte (considerado como o dia do seu natalício). Após o período de perseguições, que se encerra em 313 com a Paz de Constantino, os cristãos construíram capelas e igrejas sobre os mesmos túmulos dos seus mártires.

A veneração dos mártires, após a era do martírio sistemático, estendeu-se aos monges (que procuravam viver o espírito do martírio em absoluta renúncia no deserto); em seguida, foi devotada também aos Bispos e sacerdotes e demais fiéis do povo de Deus. Os Bispos eram os juízes da devoção espontânea dos cristãos, de modo que lhes competia aprovar ou não tal ou tal manifestação de piedade. Os Santos eram proclamados pela piedade dos fiéis e os Bispos consentiam ou não consentiam em tais gestos.

Nos séculos Vlll/IX foi debatida a questão das imagens (iconoclasmo). (Curiosamente,) o objeto da controvérsia eram principalmente as imagens de Jesus Cristo; só acidentalmente foram abordadas as imagens dos Santos e, consequentemente, o próprio culto dos Santos. O Concílio Ecumênico de Niceia II (787) declarou lícito o uso das imagens sagradas: a estas se presta um culto relativo à pessoa ou às pessoas representada(s) pelas imagens (e por estas a Deus, nunca à imagem em si). Tal culto em relação aos Santos é de veneração (dulia) e não de adoração (latreia), que compete a Deus só.

Um passo adiante no aprofundamento da temática foi dado pelo Papa João XV: no ano 993 ele procedeu à primeira canonização formal. Isto quer dizer que doravante não valeria mais a aclamação de um Santo por parte do povo de Deus, aprovada pelo Bispo local. O Papa atribuía a si a função de canonizar os Santos[1] — o que se faria após meticuloso processo ou exame dos respectivos indícios de santidade — a fim de se evitarem equívocos por parte do entusiasmo das massas de fiéis. O primeiro Santo assim canonizado foi Santo Ulrico, Bispo de Augsburgo (Baviera), falecido em 973. Nessa ocasião (em 993), João XV endereçou a encíclica Cum Conventus Esset aos Bispos da Alemanha e da Gália, em que realça dois importantes princípios da veneração dos Santos:
Honramos os servos para que a honra recaia sobre o Senhor, que disse: 'Quem vos acolhe, a Mim acolhe' (Mt 10,40). Além do quê, nós, que não podemos confiar em nossas próprias virtudes, sejamos sempre ajudados pelas preces e os méritos dos Santos.
(Denzinger-Schònmetzer, Enquiríd n° 756 [342])

(Pode surpreender alguns, muito habituados a uma leitura altamente tendenciosa da História, mas é fato que) em plena Idade Média, o Concílio do Latrão IV (1215) promulgou uma advertência sobre abusos ocorrentes no culto das relíquias(!):

O fato de que alguns expõem relíquias dos Santos para vendê-las e as apresentam ao público desordenadamente, tem acarretado danos para a religião cristã. A fim de que isto não mais aconteça, estabelecemos pelo presente decreto que doravante as relíquias antigas não sejam expostas fora do respectivo cofre nem sejam apresentadas para venda. As que forem recém-descobertas, ninguém ouse venerá-las publicamente sem que tenham sido previamente reconhecidas pelo Pontífice Romano. De resto, os prelados não permitam que os fiéis desejosos de venerar relíquias nas igrejas desses prelados sejam iludidos por falsas imagens ou documentos, como em vários lugares, por motivo de lucro, tem acontecido habitualmente,
(Denzinger-Schònmetzer, Enquirídio n°818 [440])

Vê-se que havia abusos decorrentes da fragilidade humana. Abusos, porém, que não deviam implicar a supressão do uso justificado por motivos teológicos, como adiante se verá. O culto dos Santos e das relíquias era algo de tão radicado na piedade católica que o Papa Martinho V, no questionário apresentado aos seguidores de Wiclef e Huss (contestatários reformistas dos séculos XIV e XV), incluiu a seguinte pergunta: "Crê e afirma que é lícito aos fiéis venerar as relíquias e as imagens dos Santos?" (Bula Inter Cunetas, de 22/02/1418, questão 29; D.-S., Enquirídio no 1269 [679]). De acordo com o princípio tradicional Lex Orandi Lex Credendi (a lei da oração é a lei da fé, a oração é expressão e escola de fé autêntica), o culto dos Santos praticado na Liturgia da Igreja não era apenas uma questão de disciplina ou uma prática venerável; era, sim, algo que se prendia ao patrimônio da fé católica. Negar o culto de veneração aos Santos seria ferir, ao menos indiretamente, uma verdade de fé católica. Eis por que o Papa mandava perguntar aos contestatários se aceitavam a veneração dos Santos.

Os abusos já condenados pela autoridade da Igreja no século XIII foram-se avolumando nos séculos subsequentes. O fim da Idade Média foi de piedade férvida ou mesmo exuberante, mas pouco ilustrada pela doutrina da fé, de modo que os fiéis manifestavam seus sentimentos religiosos de maneiras evidentemente aberrantes. Isto provocou a réplica de Lutero e Calvino no século XVI.
Os dois reformadores aceitavam a veneração dos Santos (aliás, quem não venera um herói ou uma heroína?), mas contestavam a sua função de intercessores; esta parecia-lhes derrogar à exclusividade da ação salvífica de Jesus Cristo; em particular, Lutero argumentava que também o justo permanece pecador (um pecador revestido do manto dos méritos de Cristo, mas pecador debaixo de uma capa de justiça); por conseguinte dizia Lutero, os justos não podem ser instrumentos de salvação.
A estas asserções, o Concílio de Trento respondeu tanto na Profissão de Fé Tridentina (13/11/1564, DS 1867 [998]) como no "Decreto sobre a Invocação, a Veneração e as Relíquias dos Santos e as Imagens Sagradas" (3/12/1563). Este último afirma seis pontos:

1) Os Santos, que reinam com Cristo, oram pelos homens;

2)
Invocá-los e implorar a sua intercessão é coisa boa e útil;

3)
No entanto, Cristo (permanece) sendo o único Redentor;

4)
Os benefícios em resposta à oração vêm de Deus através de seu Filho (a Deo per Filium) [o Concílio ainda exortou os Bispos a que instruíssem os fiéis conforme a Tradição da Igreja e impedissem os abusos existentes];

5)
A veneração das relíquias se justifica pelo fato de que os corpos dos Santos eram templos do Espírito Santo e serão ressuscitados para a vida eterna;

6)
Às imagens dos Santos prestem-se honra e veneração, tendo-se em vista aquele ou aqueles que tais imagens representam. A veneração das imagens estimula o agradecimento a Deus e a imitação dos heróis da fé (ver DS, Enquirídio no 1821-1825 [984-988]).

Como se vê, o Concílio de Trento reiterou a doutrina tradicional da Igreja, ao mesmo tempo que repeliu quaisquer abusos, para os quais chamou a atenção dos Bispos e mestres da fé, encarregados de velar pela pureza da doutrina e da piedade cristãs. Note-se, porém, que os padres conciliares quiseram salvaguardar a liberdade dos fiéis frente ao culto dos Santos; este é tido como bom e útil (bonum et utile), não, porém, obrigatório. A Igreja como tal cultua os Santos em seu calendário litúrgico, mas deixa ao critério de cada fiel definir os termos de sua devoção pessoal.

Até o Concílio do Vaticano II (1962-65) nada de novo se disse em caráter oficial sobre o assunto. Este último Concílio retomou a temática e deu-lhe uma formulação bem mais precisa e correspondente às objeções protestantes; enfatizou especialmente o caráter cristocêntrico e teocêntrico do culto dos Santos. Cristo e Deus Pai é que, em última análise, são cultuados quando se cultuam os Santos.
Assim, por exemplo, reza a Constituição Sacrosanctum Concilium sobre a Sagrada Liturgia:

Nos natalícios dos Santos a Igreja apregoa o Mistério de Páscoa vivido pelos Santos que com Cristo sofreram e foram glorificados, e propõe o seu exemplo aos fiéis, para que atraia, por Cristo, todos ao Pai e por seus méritos obtenham os benefícios de Deus.
(N. 104)

Tal texto demonstra o caráter fortemente teocêntrico e cristocêntrico ao culto dos Santos. Ele nos induz a reconhecer o Mistério da Páscoa ou da Vitória de Cristo sobre o pecado e a morte. O exemplo dos Santos deve levar os fiéis ao Pai mediante Jesus Cristo. O mesmo é dito pouco adiante: "As festas dos Santos proclamam as maravilhas de Cristo realizadas em seus servos e mostram aos fiéis os exemplos oportunos a ser imitados" (n. 111).

A Constituição Lumen Gentium insiste sobre o enfoque cristocêntrico, quando afirma:

Assim como a comunhão cristã entre os cristãos na Terra mais nos aproxima de Cristo, assim o consórcio com os Santos nos une também a Cristo, do qual como de sua Fonte e Cabeça promana toda a graça e a vida do próprio Povo de Deus. Convém, portanto, sumamente que amemos esses amigos e co-herdeiros de Jesus Cristo, além disso irmãos e exímios benfeitores nossos; rendamos as devidas graças a Deus por meio deles, os invoquemos com súplicas e recorramos às suas orações, à sua intercessão e ao seu auxílio para impetrarmos de Deus as graças necessárias por meio de Seu Filho Jesus Cristo, único Redentor e Salvador nosso. Pois todo genuíno testemunho de amor manifestado por nós aos habitantes do Céu, por sua própria natureza tende para Cristo e termina em Cristo, que é a coroa de todos os Santos e, por Ele, em Deus, que é admirável nos seus Santos e neles é engrandecido.
(N. 50)

Assim o Concílio do Vaticano II esclareceu a veneração aos Santos como algo de logicamente inserido no patrimônio da genuína fé e algo de salutar, tendente a nos fazer mais e mais admirar a obra de salvação de Deus, que toma novas e novas facetas em cada Santo. Estes nos levam a Deus; são totalmente relativos a Deus, como bem dizia S. Agostinho:

Ipse enim sine illis Deus est; illi sine ilio quid sunt? – Deus é Deus sem eles (os santos), mas eles, que são sem Deus?”
(Sermão 128, 3 de Santo Agostinho)


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Fontes e bibliografia na conclusão
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Adoração somente a Deus: há exageros no culto católico a Maria? – parte 2


O problema é que as vezes o ensinamento da igreja católica é diferente do que a gente ve na igreja , os fiéis e até o que os padres ensinam., Sobre esse assunto Uma coisa que eu fico meio assim é quando a pessoa diz que é "católico mariano". Meu Deus não foi Jesus que salvou? Maria não é serva de Jesus também? então que história de 'mariano'?

O ARTIGO SOBRE adoração a Deus e veneração a Nossa Senhora gerou especial repercussão, e já esperávamos que seria preciso dizer mais sobre o tema. De fato, a experiência, inclusive de vida, me permite conhecer os principais anseios de católicos e não católicos quanto aos assuntos relacionados à Doutrina. E digo que este tema específico, a meu ver, é quase que um "ponto cego" na prática pastoral da Igreja. Por conta deste, católicos mal formados e mal orientados se vão; outros resistem ou recusam-se a retornar a ela. Digo-o porque temos, de um lado, padres marianos que, sempre entusiasmados em exaltar a Rainha do Céu, também se esquecem sempre de dizer, por exemplo, que Maria é humana, que também ela foi salva por Cristo e/ou que, em que pese toda sua grandeza, ela é serva de Deus também. É isso o que nosso consulente quer ouvir, para se sentir seguro, e tudo isso é doutrina 100% católica, embora talvez (tenho que reconhecer) muitas vezes não pareça. O que é óbvio para alguns não é tão óbvio para todos, por muitos motivos.

Lembro-me, por exemplo, de um grande evento católico, num grande estádio de futebol em que um conhecido arcebispo de uma das principais capitais brasileiras (por motivos óbvios prefiro não citar nomes), em dado momento da pregação, deixou escapar: "Estamos aqui adorando esta imagem de Maria...". Evidente que foi um ato falho; creio piamente que ele queria dizer "venerar", "honrar", "homenagear" ou algo assim. Em todo o restante do discurso ele usou estes termos, corretamente. O fato, porém, é que aquela frase equivocada, perdida, passou, aparentemente desapercebida no meio de um longo pronunciamento. Mas terá mesmo passado totalmente desapercebida? O que sei é que haviam milhares de pessoas presentes, ouvindo, por um breve instante, uma heresia da boca de um Cardeal Arcebispo. Foi uma situação que me marcou, porque aconteceu exatamente na fase de minha vida em que eu vivia o meu momento de reconversão, de retorno à Casa do Pai, depois de ter me afastado e vagado por diversas denominações protestantes. E naquela frase um sucessor dos Apóstolos pareceu confirmar algo de que os pastores protestantes acusam, falsamente, a Igreja Católica...

Não foi nada. Como eu sempre fui de estudar, de ponderar e procurar a verdade com diligência, de imediato soube reconhecer que se tratara simplesmente disso, de um deslize, um equívoco, um termo infeliz mal colocado numa frase. Mas não deixou de ser uma situação absurda, tal erro primário saindo da boca de um pastor de almas supostamente preparadíssimo. Por que isso acontece? Porque, talvez, falte algum pudor, algum cuidado maior para se falar deste assunto, de parte dos católicos, e isso escandaliza muita gente.

Outra questão importante –, ainda que secundária para o que nos interessa aqui –, é que muitos dos nossos pastores também se esquecem, e com muita frequência, de dizer que só existe uma "Nossa Senhora" –, a Mãe de Jesus –, e que os títulos que lhe atribuímos são sempre secundários. Testemunhava um padre amigo que, em certo pequeno município de São Paulo, numa certa procissão de Sexta-Feira Santa promoveu-se o "encontro das Virgens", isto é, de duas imagens diferentes de Nossa Senhora (se bem me lembro uma de Nossa Senhora das Dores e outra da Alegria!). Ora, ainda que haja, dentro de um contexto próprio, alguma razão catequética para tanto, não se pode negar que esse tipo de coisa provoca confusão. Só há uma Virgem Maria de Nazaré, como podem se encontrar "duas Marias" numa procissão, como se se tratassem de "duas santas" diferentes?

Bem, sei que não são poucos que pensam que cada imagem de Nossa Senhora, sob determinado título, é uma santa diferente da outra. Via de regra são pessoas humildes e muito simples, e não sei até que ponto podemos acusá-las, porque é fato que pouco se explica, nas homilias e pregações públicas, a este respeito.

Todo o exposto até aqui é real e me parece importante. Igualmente é verdade que, de outro lado, temos aqueles que, preocupados com a pureza da Doutrina, receiam em se entregar a uma devoção mais profunda, de intimidade e proveitoso relacionamento com a nossa poderosa Mãe do Céu. Isto acontece especialmente com aqueles que vem do protestantismo.

Pois é... Quando digo "poderosa" Mãe do Céu, sei que já estou potencialmente provocando polêmica, certo Artur? Sim, sim, nós, católicos, sabemos bem que Maria não tem poder por ela mesma. Eu também poderia dizer "gloriosa Mãe de Cristo", e você gritaria que ela não tem glória, que toda glória pertence a Deus, que Deus não divide sua glória (como vimos no estudo anterior)...

O problema todo tem a ver com palavras e, principalmente, com o significado das palavras ou o significado que se atribui a elas. Maria é criatura, ainda que uma criatura soberbamente agraciada, e como tal não tem o poder de realizar milagres, por exemplo, ou curar alguém por ela própria. Entretanto, o poder que ela tem é o da intercessão. E o poder da intercessão da Mãe de Deus, meu irmão, este é um tremendo, imenso, avassalador poder. Se este aqui fosse um site destinado ao público adolescente, eu diria que é um poder maior do que qualquer superpoder; algo que humilharia o Superman, se ele existisse...

Este grande poder de Maria chegou a ser chamado "onipotência suplicante", e aí você vai se escandalizar de novo. Mas, como eu disse, é tudo uma questão de prestar atenção às palavras. Veja que não está a se afirmar que "Maria é onipotente"; fala-se, isto sim, em "onipotência (atenção) suplicante". Pois é, esta segunda palavrinha faz toda a diferença entre o que seria uma blasfêmia e uma afirmação plenamente consonante à Doutrina cristã de sempre. Diz-se onipotência suplicante, porque Maria consegue, obtêm de Cristo, suplicando –, por nós e pelo mundo pecador –, tudo.

"Tudo?", dirá você. Sim, eu respondo. Como assim? Se eu pedir a ela que me faça o homem mais rico do mundo, ela conseguiria isto por mim? Não, muito provavelmente isto ela não me daria por meio da sua intercessão. Ora, mas as suas súplicas a Deus, então, não são onipotentes? O problema aí é outro. Maria não obteria algo desse tipo porque, em primeiro lugar, ela não pediria isto a Deus. Simples assim. S. Tiago Apóstolo foi claríssimo ao falar sobre situações deste tipo em sua Epístola: "Pedis, e não recebeis, porque pedis mal, para o gastardes com os vossos prazeres" (4,3).

As súplicas de Maria só são tão poderosas porque ela pede apenas aquilo que é conforme à Vontade de Deus, e ela só pede o que é conveniente porque vive no Céu em íntima Comunhão com o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Ela, que foi a mais obediente e mais conforme à Vontade do Pai dentre todas as criaturas, quando caminhava no mundo, agora, em Glória inacessível, está ainda mais perfeitamente alinhada àquilo que Deus quer, e o que Deus quer para nós é sempre o nosso bem maior. O nosso bem maior é a vida plena e eterna no Céu, portanto, pedidos fúteis ou que nos afastem deste bem maior não são feitos por Maria.

Assim, quanto se fala no "poder" de Maria ou nas "glórias" de Maria, é sempre dentro do contexto que acabamos de expor. Todo o poder vem de Deus; toda a glória vem de Deus. Quando alguém pede, por exemplo, uma cura a Maria, é sempre Deus Quem cura – e quantas curas os fiéis católicos obtêm por intermédio de Nossa Senhora! Se nos concentrarmos apenas em Lourdes, são muitíssimos os casos confirmados, com perícias e laudos médicos, sem contar aqueles (muitos!) que não chegam a ser estudados.

Logo, tem Maria poder por ela mesma? Não. Ela tem, isto sim, um poder de intercessão incomparável. Por isso é que, muitas vezes, padres e pregadores falam do "poder de Maria", das "glórias de Maria": é sempre o poder que Deus dá a ela, de obter grandes coisas por nós; as glórias incomparáveis que Deus dá a Maria, a mulher que Ele quis ter por Mãe.

Muito bem. Até aqui, creio que não há grandes dificuldades de compreensão. Mas os problemas recomeçam, novamente pelo mau uso que se faz das palavras. Lá vai algum padre piedoso, durante uma homilia, dizer que "Maria nos salva", e não esclarece o que está realmente dizendo com isso. Há até um cântico católico tradicional que diz, no refrão: "Doce coração de Maria, sede a nossa salvação"... "Oh! Está vendo? Só Jesus salva! Isto é idolatria! Heresia! Blasfêmia!", dirá Artur.

Nada disso. Quando você diz "Só Jesus salva", todo católico minimamente bem formado responderá, singelamente: "Amém!". É o que eu respondo sempre que me dizem isto, e percebo que essa reação causa espanto. Ora, é claro que só Jesus salva. Todos os documentos da Igreja, desde o início até hoje, a começar pela própria Bíblia Sagrada, afirmam e reafirmam esta verdade fundamental inúmeras vezes. E nós cremos que Maria, assim como os santos e anjos de Deus, conduzem-nos a Cristo, de muitos modos, por meio de suas súplicas incessantes.

Vejamos um exemplo prático e bem simples. Imagine um sujeito qualquer –, vamos chamá-lo João –, cuja vida vai de mal a pior. Ele está perdido em muitos vícios, afastado de Deus, sem fé, sem esperança, sem caridade. Um belo dia, um autêntico cristão chamado José, alguém de fé realmente ardente, pelo seu exemplo e com muita perseverança, convence o pobre João a ir à igreja. Indo à igreja e ouvindo a pregação, João, que estava desesperançado, vai se transformando por dentro, sua fé vai se reacendendo e, logo na próxima oportunidade, novamente José o leva à igreja; assim a coisa continua e com isso João, o pecador contumaz, de tanto ouvir falar de Cristo, volta a crer, aos poucos vai abandonando os seus vícios, até se arrepender completamente deles, confessar os seus pecados e, afinal, retomar a Comunhão com Cristo.

Pergunta: poderíamos dizer que José salvou João? Sim! José convidou, chamou, deu exemplo, persistiu, acompanhou e, assim, João reencontrou Jesus Salvador. Não foi José quem salvou João no sentido literal ou mais profundo, porque, se João afinal aceitou ir à igreja, antes de tudo, foi por misericórdia do próprio Cristo, por inspiração do Espírito Santo, que chama as almas à reconciliação com Deus. Todavia, José fez bem a sua parte, cumpriu a sua obrigação de cristão e, de algum modo, participou ativamente na salvação de João. João poderá dizer, sem errar: “José foi a minha salvação!”, porque o levou ao verdadeiro e único Salvador.

É mais ou menos isso o que se dá com Maria e os santos: eles pedem incessantemente a Deus por nós, oferecem-nos constantemente o exemplo de suas vidas, inspiram-nos a procurar Cristo. Que grande multidão de almas salvou-se (ainda que não diretamente por eles) por meio deles!


Nossa Senhora é reverenciada em todo o mundo sob muitos títulos: esta estátua colossal da Virgem Maria fica no município de Santa Clara, Califórnia, EUA


Adoração e veneração

O problema é que as vezes o ensinamento da igreja católica é diferente do que a gente ve na igreja , os fiéis e até o que os padres ensinam (...)

Haverá, então, diferença entre o que a Igreja prega e ensina "oficialmente" e o que pratica de fato? Já conversei com muitos protestantes e pentecostais decepcionados com suas comunidades e sinceramente desejosos de conhecer a primeira (e única) Igreja de Cristo sem preconceitos, com boa vontade e alma desarmada. Ao estudar o Catecismo e documentos pontifícios, encantam-se, mas escandalizam-se diante de muitas das práticas que veem em pessoas confessadamente católicas. Estudam os documentos da Igreja e encontram coerência, mas não podem aceitar certos costumes, que não compreendem. É por isso que venho aprofundar mais o problema proposto pelo leitor antes anônimo, que agora se identifica com o nome "Artur". Será que, na Igreja, o discurso é diferente da prática? Aprofundemos a nossa análise um pouco mais.

O escândalo se dá, por exemplo, ao ver alguém se prostrar ante um ícone, beijá-lo, falar diante dele como se falasse a ele. Antes de mais, é preciso distinguir o ícone de um santo de um ídolo. Um ídolo (do grego, εἴδωλον, eidolon) é um objeto, imagem ou criatura colocada no lugar de Deus; literalmente, é um deus falso. Isto é claramente proibido pelo primeiro Mandamento da Lei de Deus. Já o ícone representa um santo (quando não o próprio Cristo), que é uma criatura de Deus, mas que não é jamais colocada no lugar de Deus, ao contrário; remete a Ele, como vimos. Um santo é como uma ponte para Deus, uma seta que aponta para Cristo, um lembrete para a nossa salvação.

Fica clara, então, a grande diferença que existe, afinal, entre adoração e veneração. Sendo um ídolo algo que se coloca no lugar de Deus, então temos muitas possibilidades de trair o Primeiro Mandamento: posso idolatrar um(a) amante, um grande líder político ou mesmo religioso, um artista, um cantor, um músico, um grande esportista... Depende de como se lida com as pessoas que se admira, de como se "olha" para elas. Diante de qualquer criatura, seja pessoa ou objeto, há sempre uma escolha a ser feita: vê-la e tê-la como um ícone (do grego, εἰκών, eikon) ou como ídolo. O ícone remete a Deus, leva a Deus, homenageia a Deus. Muitos salmos louvam a Deus pelas belezas que criou; assim, qualquer coisa de que gostamos pode servir para nos levar mais perto de Deus, por gratidão, por reconhecer nesta coisa a sua Glória e Bondade. Mas, se elevamos aquele bem de que muito gostamos ao lugar de Deus, então idolatramos.

Na Sagrada Escritura, a própria Virgem Santíssima, cheia do Espírito Santo, declarou de si mesma: “Todas as gerações me proclamarão bem-aventurada” (Lc 1,48); além disso, o Senhor Jesus Cristo em Pessoa, por diversas vezes, referiu-se às pessoas “bem-aventuradas”: os humildes, os que tem fome e sede de justiça, os pacificadores, etc. Ele mesmo estava, assim, louvando tais pessoas, pelas virtudes que receberam do Pai, chamando a atenção para a ação de Deus em tais criaturas. Assim são os santos.

Quando os católicos veneram um santo, o que fazem, em última análise, é louvar a Deus e agradecer por Ele usar pessoas humanas, tão frágeis, para realizar a sua Obra. No caso de um ícone, que recorda alguma criatura, a mesma regra se aplica. Portanto, é licito venerar imagens, prostrar-se diante delas, falar com os santos diante dessas imagens, beijá-las simbolicamente, acender velas diante delas, oferecer flores. O II Concílio de Niceia diz com clareza que o culto prestado à imagem não se dirige à imagem em si, mas sim ao protótipo, ou seja, àquele que está no Céu. Deus resplandece sua Glória naquela criatura.

Assim, ajoelhar-se diante de uma imagem da Virgem Santíssima pode ser considerado idolatria? A resposta direta e honesta é: depende. Se esta imagem está sendo vista e tratada como um ídolo por aquela pessoa, ou seja, está sendo posta no lugar de Deus, então sim. Mas, se ela for vista como um símbolo, uma ponte que leva a Deus, que conduz para o culto e o louvor a Deus, na Glória eterna que só a Ele pertence, então não.

Agora, convenhamos: será mesmo que existam em nossos tempos muitas pessoas que confundam Deus com uma estátua? Algum ser humano racional poderá realmente acreditar que uma escultura feita por mãos humanas é a Criadora do Universo, a Fonte da vida e a Provedora de todas as graças? Responda o leitor.


Católicos 'marianos'?

A Igreja de Cristo, como o próprio nome diz, é cristã e, como tal, tem que ser católica (universal, que existe como 'Casa de Oração para todos os povos', cf. Mc 11,17; Is 56,7). Se, por piedosa devoção, nos colocamos como "marianos", ou dizemos que somos "tridentinos", "carismáticos" ou outra coisa, é preciso cuidado com essas expressões que são, por mais piedosas, sempre secundárias e mesmo dispensáveis. De fato e de direito, até pelo bem daqueles que não conhecem a Sã Doutrina (dentro e fora da própria Igreja), bastaria e seria mais correto, para todos os efeitos, dizer que somos cristãos e católicos. Ponto.

O termo "mariano" seria como que um subtítulo que, diga-se de passagem, foi adotado por diversos grandes santos no correr dos séculos. Ainda assim, permanece subtítulo e, como todo subtítulo, não é necessário, mas contingente/acidental. É algo semelhante ao que acontece com uma obra literária, que precisa de um título, para que possa ser publicada e logo catalogada, depois conhecida, procurada e, evidentemente, adquirida e lida pelo seu público. Mas não precisa de subtítulo: um subtítulo pode ser muito útil e enriquecedor –, desejável até –, em alguns casos. Mas permanece contingente.

O nosso "título", fiéis católicos, é este mesmo: "católicos", que é sinônimo de "cristãos". Podemos agregar a este título (necessário) um ou mais subtítulos (contingentes)? Sim. Isto é útil ou vantajoso, edificante para si mesmo e para as almas? Em certas circunstâncias, sim. Em outras, poderá se tornar contraprodutivo. Falamos aqui, especificamente, sobre o subtítulo "mariano", como poderíamos falar sobre vários outros: a Igreja, por ter crescido tanto, e tão admirável e rapidamente, desde jovem viu-se confrontada com a tentação da divisão entre seus filhos –, às vezes em grupos que terminavam por se opor uns aos outros –, não só pela diferença dos carismas, mas, infelizmente, também das personalidades, dos temperamentos e gostos particulares, coisas inescapáveis ao próprio gênero humano.

Em sentido estrito e absoluto, todo verdadeiro católico é mariano, pois que Maria Santíssima, sendo Mãe de Deus, é igualmente nossa Mãe do Céu, maravilhosa graça divina que recebemos diretamente do Cristo pendente da Cruz. Como dito, além de muitos santos, alguns dos sacerdotes mais dignos e fiéis que conhecemos se declaram "marianos". Todavia é igualmente verdade que todos eles entendem bem o que isto exatamente quer dizer, e sabem o que acabamos de expor: que o termo "mariano" é subtítulo. O título principal e suficiente –, porque basta por si só e não exige nenhum complemento –, é "cristão" e/ou "católico". Curiosamente, justamente por todo católico autêntico ser também mariano é que se faz dispensável essa subtitulação.


Sim, houve e há exageros
Tudo aquilo que nos torna dignos de ser amados aos olhos de Deus nos vem d’Ele mesmo e só nos pode ser dado por seu amor soberanamente livre e gratuito. Digno de ser amado é o Bem, e nenhum bem, seja de que natureza for, pode vir senão da Bondade essencial, Fonte de todo bem.
(Sto. Tomás, 1, q. 19, a. 3)

Deus, em sua infinita riqueza de perfeições, inclui em Si todas e quaisquer perfeições, quer as suas, quer as dos seres que Ele cria e que são reflexos ou participações nas perfeições d'Ele. Por isso a Igreja vive e se move, como rezamos na Missa, "com Cristo, por Cristo e em Cristo", Deus Conosco. Como tal, esta Igreja sempre teve clara a ideia de que o único digno de ser adorado é o mesmo Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. Ninguém mais pode ser adorado, nem sequer a criatura mais pura, agraciada e bem-aventurada que jamais existiu, a ponto de ter-se tornado para nós o Tabernáculo da Nova e Eterna Aliança entre Deus e a humanidade. Absolutamente ninguém, ninguém a não ser Deus, merece e pode receber a nossa adoração.

Há uma disciplina complexa e talvez difícil, sob certos pontos de vista, que em nossos tempos chamamos "Mariologia". Algum tempo após a divisão trazida pela dita "reforma" protestante, este tema foi-se tornando, aos poucos, um dos mais espinhosos e também dos maiores pretextos para disputas inúteis e despropositadas. Em todo caso, somos também obrigados a reconhecer, por justiça, que, de nossa parte, na ânsia em enaltecer as virtudes e a dignidade especialíssima da Virgem, em certos momentos caímos no exagero. Certas máximas como a célebre "de Maria nunquam satis" ('de Maria nunca se dirá o suficiente'), atribuída a S. Bernardo de Claraval, foram sem dúvida mal interpretadas ao longo da História, ao ponto de ter gerado, sim, em certas situações específicas, idolatria.

Consta das biografias do Padre Pio, que tinha visões da Virgem (de suas cartas ao seu confessor), que o Padre, num desses êxtases, arrebatado pela "belíssima beleza" da Mãe de Deus, exclamou: "Ah, Mãe bela, és bela! Se não tivéssemos fé, os homens te chamariam deusa!"... Tal é a glória dada por Deus à Santíssima Virgem, Rainha do Céu, assentada à direita de seu Filho, o Rei dos reis, que às mentes fracas poderia oferecer o risco de queda, realmente, na idolatria.

Quem se espanta ao se defrontar, hoje, com a doutrina 100% herética intitulada "Maria Quarta Pessoa da Santíssima Quaternidade" (desgraçadamente nascida em seio católico), na maioria das vezes não imaginará que na História da Igreja já se tinha conhecimento de grupos de “cristãos” que caíram no erro de adorar a Virgem Maria como deusa. Segue a história de uma destas heresias e de como foi devida e imediatamente condenada pela Igreja.

As heresias são tão antigas como a própria história do Cristianismo. Por isso, a Igreja tem que atuar diligentemente para denunciá-las e para que o povo de Deus não seja confundido. No séc. IV, apareceu um grupo de autodenominados “cristãos”, conhecidos como coliridianos, os quais se reuniam num culto de adoração à Virgem Maria. Este estranho culto consistia, entre outras coisas, em oferecer bolos e pastéis à Virgem, em sinal de verdadeira adoração. Na realidade, eles não eram cristãos, mas uma seita gnóstica integrada majoritariamente por mulheres que tomaram a figura de Maria e a mesclaram com a dos deuses pagãos, no famigerado sincretismo que tanto infortúnio costuma causar aos verdadeiros cristãos. Logo, misturavam-se passavam-se por verdadeiros católicos, alguns dos quais já se misturavam com eles e os admitiam ao convívio fraterno.

Quando Santo Epifânio, bispo de Salamina (367-402), soube desta heresia, não tardou em denunciá-la e condená-la em nome de toda a Igreja Católica. Tal condenação pode-se ler em sua célebre “Paranión”, da qual consta o seguinte trecho:

É ridícula e, na opinião dos sábios, totalmente absurda (a heresia coliridiana), pois aqueles que, com atitude insolente, são suspeitos de fazer tais coisas, prejudicando as mentes (…) que se inclinam nesta direção, são culpadas de terem causado pior dano.

Santo Epifânio esclarece a diferença entre o verdadeiro culto a Deus e, do jeito mais singelo, direto e objetivo possível, como convinha aos santos bispos e teólogos do seu tempo, a primeira e mais pura verdadeira devoção à Virgem Maria, dizendo com total clareza: “Seja Maria honrada. Seja o Pai, Filho e Espírito Santo adorado; mas ninguém adore Maria”.

Também entre os montanistas orientais os chamados marianistas e filomarianistas adoravam Maria com "deusa". Vemos, então, que o perigo dos exageros é real, e apesar de toda a paranoia de alguns de nossos irmãos afastados, devemos reconhecê-lo. Esta é a atitude mais séria e honesta de nossa parte.

A Santíssima Virgem 'é honrada com razão pela Igreja com um culto especial. E, em afeto, desde os tempos mais antigos, se venera a Virgem Maria com o título de Mãe de Deus', sob cuja proteção se achegam os fiéis suplicantes em todos os seus pedidos e necessidades. Este culto (…) também é todo singular, essencialmente diferente do culto de adoração a Deus, ao Verbo Encarnado, ao Pai e ao Espírito Santo, e o favorece poderosamente' (LG); encontra sua expressão nas festas litúrgicas dedicadas à Mãe de Deus (cf. SC 103) e na oração mariana, como o Santo Rosário, 'síntese de todo Evangelho'
(Catecismo da Igreja Católica §971)

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Fontes e ref.:
1. ALASTRUEY, Gregorio. Tratado de la Virgen Santissima, 4. ed. Madrid: BAC, 1856, P.841.• DIAS, Mons. João Scognamiglio Clá, EP. O Inédito sobre os Evangelhos: Comentário aos Evangelhos Dominicais. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2013.

• 'Quando a Igreja Católica condenou a adoração a Virgem Maria', disp. em
http://pt.churchpop.com/quando-igreja-catolica-condenou-adoracao-virgem-maria/
Acesso 25/1/017

• 'Culto aos santos e suas imagens', Padre Paulo Ricardo de Azevedo Jr. disp. em
https://padrepauloricardo.org/episodios/culto-aos-santos-e-suas-imagens

Acesso 25/1/017
www.ofielcatolico.com.br

Gigante Ratzinger

ACABO DE CONCLUIR as notas de minha autoria para o relançamento do livro "O Novo Povo de Deus", do titã da Teologia Joseph Ratzinger, publicada originalmente em 1969, quatro anos após o encerramento do Vaticano II e como ressonância direta deste. Para esta obra, mais atual do que nunca, oferecida agora pela editora Molokai do cruzado contemporâneo José Alberto Siqueira (empreendedor nada preocupado em dizer ao mundo o que ele quer ouvir) e da qual sou o atual editor-chefe, cuja tradução co-revisei e diagramei, recebi a imerecida honra de produzir os textos de apresentação, juntamente com o querido amigo prof. Rudy Assunção, competente especialista em Ratzinger que assumiu a tradução. 

Quero compartilhar esta alegria com os leitores de "O Fiel Católico" como forma de homenagem a este colosso da Igreja que tive o privilégio de conhecer e cujo exemplo segue sendo uma guia. Abaixo.



Quando a Igreja se recusa a trocar a sua doutrina imutável e atemporal pela subjetividade da orientação mundana, que se baseia sempre nas fugidias tendências culturais e pseudocientíficas do momento, é porque sabe que a sua defesa dos valores humanos e morais –, valores inegociáveis –, precisa continuar sendo como um farol seguro para todo aquele que procura a verdade e a transcendência.

Especialmente quando muitos navios naufragam é que se deve intensificar a luz dos faróis. "O novo povo de Deus" articula-se em certas grandes partes, sendo uma delas  a reforma católica da Igreja, defendendo, no imediato pós-Concílio (V.II), que surgira já uma falsa reforma da Igreja, e definindo critérios que deveriam guiar o verdadeiro renascimento eclesial.


* * *

Gigante

A obra de Ratzinger é uma herança de valor incalculável. Sua vasta produção teológica e intelectual se traduz numa contribuição imensa não só para católicos sedentos de conhecimento das coisas santas, como também para o patrimônio cultural da humanidade. Mestre, doutor, pastor de almas zeloso, porém manso e humilde de coração; bem disse o jornalista José Maria e Silva, referindo-se à histórica renúncia, que, a partir daquele dia, o mundo se apequenaria, desprovido da voz segura de um gigante1.

Não só de suas obsessivas investigações nos campos da fé e da razão (que o levaram aos seus oito doutorados), mas também de sua história de vida, muitas vezes sofrida –, das agruras da guerra e o recrutamento forçado até as incompreensões do mundo materialista –, Ratzinger formou as profundezas abissais do seu pensamento teológico, sem abandonar jamais a modéstia admirável que o caracterizou nos serviços prestados ao Corpo de Cristo, desde humilde coroinha até as mais altas responsabilidades, de prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé a sucessor de Pedro.

De fato, sabemos que o nome Joseph Ratzinger/Bento XVI – considerado pelos grandes como o maior teólogo vivo do mundo – deverá figurar entre os dos grandes Doutores da Igreja, até o fim dos nossos tempos.

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1. Publicado no jornal 'Opção', disp. em
www.jornalopcao.com.br/posts/reportagens/o-mundo-se-apequena-sem-a-voz-de-um-gigante
Acesso 24/1/017.
www.ofielcatolico.com.br

Adoração somente a Deus: há exageros no culto católico a Maria?


RECEBEMOS DE UM LEITOR anônimo, há alguns dias, um questionamento que nos pareceu sincero em sua angústia, pois não é pecado o desejo sincero de compreender as coisas santas, mas sim a pertinácia em duvidar e desafiar, conscientemente, a doutrina salvífica da Igreja. Não se trata de novidade, mas de questão recorrente (outro motivo que a faz merecer satisfação). Reproduzimos abaixo a pergunta, seguida de nossa resposta:

Boa tarde. Não quero discutir, quero aprender, pq se ninguém me ensinar não saberei. Estou numa fase de procurar Deus (...) quero entender o que Deus quer de mim.

A minha pergunta é o seguinte. os evangélicos acusam os católicos de adorar Maria, os católicos dizem que não, eu já li várias explicações mas eu fico numa dúvida porque qual é a diferença entre adorar e venerar? Eu não vejo diferença, por exemplo o saltério da virgem Maria é todos os louvores dos salmos feitos pra Deus, só que em vez de rezar pra Deus reza pra Maria, não é isso? Entao, qual a diferença? O católico ajoelha na frente da estátua de Maria, pede pra ela, diz pra ela todos os louvores que na Bíblia diz que pertence somente a Deus e que Deus não divide a sua glória com ninguém - Is 42:8.

Como é que fica? Não quero briga, só quero entender. Vc pode amar Maria mas não pode adorar, só que na prática é a mesma coisa o que os católicos fazem, ou eu estou errado, por favor mostre onde.

[Pedimos encarecidamente aos nossos consulentes que se identifiquem]

Antes de tudo, reproduzo, logo abaixo, o que diz o Catecismo da Igreja Católica a respeito de idolatria, superstição e da adoração exclusiva a Deus. Parece-me que será este um bom começo:

«Não terás outros deuses perante Mim»
O primeiro Mandamento proíbe honrar outros deuses, além do único Senhor que Se revelou ao seu povo: e proíbe a superstição e a irreligião. A superstição representa, de certo modo, um excesso perverso de religião; a irreligião é um vício oposto por defeito à virtude da religião.

A SUPERSTIÇÃO
A superstição é um desvio do sentimento religioso e das práticas que ele impõe. Também pode afetar o culto que prestamos ao verdadeiro Deus: por exemplo, quando atribuímos uma importância de algum modo mágica a certas práticas, aliás legítimas ou necessárias. Atribuir só à materialidade das orações ou aos sinais sacramentais a respectiva eficácia, independentemente das disposições interiores que exigem, é cair na superstição (39).

A IDOLATRIA
O primeiro mandamento condena o politeísmo. Exige do homem que não acredite em outros deuses além de Deus, que não venere outras divindades além da única. A Sagrada Escritura está constantemente a lembrar esta rejeição dos «ídolos, ouro e prata, obra das mãos do homem, que «têm boca e não falam, têm olhos e não vêem...». Estes ídolos vãos tornam vão o homem: «sejam como eles os que os fazem e quantos põem neles a sua confiança» (Sl 115, 4-5.8) (40). Deus, pelo contrário, é o «Deus vivo» (Js 3, 10) (41), que faz viver e intervém na história.

A idolatria não diz respeito apenas aos falsos cultos do paganismo. Continua a ser uma tentação constante para a fé. Ela consiste em divinizar o que não é Deus. Há idolatria desde o momento em que o homem honra e reverencia uma criatura em lugar de Deus (...).


Sua mensagem contém não uma, mas diversas perguntas importantes, anônimo; traz todavia uma questão essencial oculta por trás das palavras ditas, à qual faremos questão de responder. Respondamos objetivamente, primeiro, às perguntas diretas:

1. A devoção mariana é intrínseca ao culto cristão desde sempre. Leia a postagem a seguir para compreender bem este fato: "Pergunta e resposta: Origem da devoção à Santíssima Virgem Maria".

A Santíssima Virgem é, com razão, venerada pelos cristãos com culto especial, de um modo ou de outro, desde que existiu Igreja, e não haveria como ser diferente. Tanto é assim que a Igreja distingue três tipos de culto: o de latria (do grego latreuo), que significa adoração; o de dulia (do grego douleuo), que quer dizer honra, veneração; o de hiperdulia (do grego hyper), que significa acima, mais alto, maior.

• O culto latria (adoração) é prestado única e exclusivamente a Deus. Só Deus pode ser adorado e só Cristo –, Deus feito homem –, é nosso Salvador. O próprio Cristo disse, reafirmando o Mandamento divino imutável, de forma categórica: “Adorarás o Senhor teu Deus e somente a Ele servirás” (Mt 4, 10).

• O culto de dulia é de honra e de veneração, semelhante ao respeito e reverência que, também por Mandamento divino, temos de prestar a nossos pais terrenos. É este o culto que prestamos aos santos e anjos do Céu.

• O culto chamado hiperdulia (hyperdouleuo), prestado exclusivamente à Virgem Maria, é também um culto de honra e de veneração, idêntico ao que prestamos aos santos e santos anjos, porém tem um caráter especial, destacado, mais elevado, pela dignidade incomparável da santíssima Virgem, de quem o Senhor tomou sua carne. Sobre ela, já falamos muito por aqui, e não há como abrir parênteses dentro desta resposta para explicar porque é tão importante. Sugiro uma pesquisa acessando este link.


2. Prostrar-se (ajoelhar) diante de uma imagem é um gesto de adoração? Sobre este assunto específico já tratamos também por aqui. Peço que leia o artigo "Prostrar-se ou ajoelhar-se é adorar?".


3. “Deus não divide sua glória? Aqui está o que poderíamos chamar de falácia protestante clássica. Aos santos, sim, Deus dá da sua glória, e tal fato está soberbamente comprovado pelas sagradas Escrituras, alguns exemplos abaixo:

Dei-lhes a glória que me destes a Mim (diz o Cristo).
(Jo 17,22)

O Senhor Deus é nosso Sol e nosso Escudo, o SENHOR dá a graça e a glória. Ele não recusa seus bens àqueles que caminham na inocência.
(Salmo 83,12/84,11)

Deus predeterminou antes de existir o tempo, para a nossa glória.
(1Cor 2,7)

Os que chamou, também os justificou, e os que justificou, também os glorificou
(Rm 8,30)

Vi outro Anjo descendo do céu, tinha um grande poder e a Terra ficou iluminada com a sua glória.
(Ap 18,1)

Glória, honra e paz para todo aquele que pratica o bem.
(Rm 2,10)

É preciso que nos mantenhamos constantemente atentos, porque há verdadeiros embustes perpetrados por falsificadores da Bíblia Sagrada. Tanto assim, que, há pouco tempo (8/015), os próprios luteranos reconheceram seu erro teológico no que se refere ao uso das imagens sacras. Afinal, alguém além da Igreja Católica fez circular na Imprensa um pedido público de desculpas – desta vez destinada exatamente aos católicos (leia matéria exclusiva – em inglês). Curioso, esta retratação praticamente não foi noticiada, diferente do "banzé" que se fez quando João Paulo II se manifestou com relação aos pecados dos filhos da Igreja em 1999.

Quando lemos a Bíblia é preciso extremo cuidado para não cair na tentação de pinçar, do conjunto da Obra, algumas breves passagens que pareçam indicar alguma coisa. O Livro Sagrado precisa ser lido como um conjunto coeso e harmônico, cujas partes convergem a uma mesma grande verdade sem jamais se contradizer. Sim, Deus divide a sua Glória –, divide, sim senhor –, e com soberba generosidade.


4. Sendo assim, há diferença entre o culto prestado a Deus e aquele prestado à Maria santíssima? Claro e evidente que sim. É necessário dizer que o culto de hiperdulia, que pode ser corretamente traduzido por "grande veneração", não se equipara absolutamente ao culto de adoração. Se houver dúvida sobre isto, basta observar a essência do principal e maior ato de adoração da Igreja Católica: a santa Missa.

O Centro e Auge da Missa não é Maria, e sim Jesus Cristo. Já a Procissão de entrada é realizada com a Cruz de Cristo à frente (e não alguma imagem de Maria). Depois, temos o Ato Penitencial, que é o momento em que a assembleia reunida suplica perdão a Deus-Trindade (e não a Maria). A seguir, no Glória, não é Maria a ser glorificada, mas o mesmo Deus Criador e Salvador. A Liturgia da Palavra também não é a récita do saltério ou de algum louvor mariano, e sim as leituras do Velho e do Novo Testamento, culminando com o Evangelho de Nosso Senhor, precedido de um Salmo de louvor ou ação de graças a Deus (não a Maria). Durante a santa Missa, como parte do rito, é obrigatória a oração do Pai-Nosso, porque ensinada pelo Cristo, mas não se reza a Ave-Maria (a não ser, facultativamente, após a benção final). Antes da Comunhão, reza-se o Cordeiro de Deus, e então vem a Consagração do Pão do Céu, a própria Eucaristia, que para a nossa fé é "o Centro da vida da Igreja" (CIC1343): este, que é o momento máximo da Missa e da vida de piedade e devoção do cristão, é um momento de adoração ao Senhor, e somente a Ele. Por fim, na benção apostólica que conclui os ritos, roga o sacerdote: "O Senhor esteja convosco!" (O Senhor, e não Maria) e a seguir: "Abençoe-vos o Deus todo-poderoso, Pai e Filho e Espírito Santo", com a seguinte conclusão: "Ide em paz e que o Senhor sempre vos acompanhe!".

* * *

Bastante claro, para qualquer pessoa de boa vontade. Nada disso, entretanto, exclui Maria. Ela, como Rainha do Céu e Mãe da Igreja está sempre presente, inclusive no momento da renovação do Sacrifício do Calvário, sempre de modo especial. Ninguém acompanhou Nosso Senhor como ela, nenhum dos apóstolos, absolutamente ninguém, desde a concepção até a morte pavorosa. Por isso mesmo, muitos católicos pedem a ela que os acompanhe o tempo todo, durante toda a Celebração. Mas esse carinho filial para com a Mãe de Deus não muda o fato de que toda a Celebração da santa Missa é feita "em Cristo, por Cristo e com Cristo", dirigida a Deus Pai, em Comunhão com o Espírito Santo. Sim, podemos rogar pela presença de Maria a todo instante, mas o católico que não concentra todas as suas atenções em Nosso Senhor Jesus Cristo durante o sublime momento da Comunhão está perdido; precisa de ajuda urgente!

É mais do que evidente que não é a Maria que adoramos e nem é a ela que suplicamos pela salvação das nossas almas. Cremos que ela intercede, mas sabemos  que é sempre Cristo Quem concede. Não é o corpo dela que oferecemos a Deus e nem é a ela que pedimos perdão. Também não é do corpo de Maria que somos membros, mas do de Cristo, o nosso (como gostam de dizer os protestantes) "único e suficiente Salvador".

Citamos a Missa porque, como já foi dito e é patente, trata-se do culto cristão católico por excelência. Todavia, indo além, veremos que todos os atos realizados, de modo geral, no culto católico, possuem apenas um único fundamento: adorar e bendizer o Nome santo de Deus. Maria, por vontade do mesmo Deus, tem uma participação ativa importantíssima em todo o culto divino. Cremos que os santos do Céu rezam conosco, e também os anjos de Deus. Assim, Maria está presente, como poderosa intercessora, e cremos que sua presença é um auxílio excelente.

Ainda assim, mesmo nas solenidades de exaltação da Virgem santíssima, todas as orações, ainda que em reverência e homenagem a ela, são, no fundo, sempre dirigidas a Deus. O papa Francisco, em sua visita ao Brasil, rezou assim diante da imagem de Nossa Senhora Aparecida: "Mãe Aparecida, assim como vós, um dia, também eu me sinto hoje diante do vosso e meu Deus, que nos propõe para a vida uma missão...". Por maior que seja a santidade de Maria, e por mais agraciada, assim como nós ela serve a Deus. Quando Nossa Senhora das Graças apareceu a Sta. Catarina Laboré, diante do Altar da capela à Rue du Bac, a santa viu a Mãe de Cristo, toda gloriosa, humildemente ajoelhar-se diante do Santíssimo, assim como nós fazemos (e ainda que tantos de nós, miseráveis pecadores, não o façamos!). Num Mistério de proporções incompreensíveis, o Cristo, seu Filho, que um dia lhe foi submisso, é ao mesmo tempo seu Pai e Senhor.


Cristocentrismo

Aqui entramos, por fim, naquela questão mais importante e oculta que citamos bem no começo deste artigo. Se há um mérito indiscutível do tão polêmico concílio Vaticano II, foi o claro resgate do perpétuo cristocentrismo da fé da Igreja. Houve tempos em que o povo de Deus se perdeu em mil devocionismos ou devocionalismos. O devocionismo é um fruto da ignorância, que por sua vez é o resultado de uma catequese deficiente e que, como funesta consequência final, pode levar à perdição da alma (Os 4,6).

O devocionismo, de fato, atrapalha o verdadeiro relacionamento do fiel católico com Cristo, pois acaba por lhe tomar todo o seu tempo de oração, desviando o foco de suas atenções. Preciso deixar aqui o meu próprio testemunho, de ter conhecido mais de uma pessoa que simplesmente dizia "não conseguir" falar diretamente a Jesus Cristo, mas somente a Maria(!), simplesmente por hábito, por um costume enraizado desde a infância. Bem, há algo errado aí, e muito errado. Parece ter-se recriado a ideia (pagã, na realidade) de que Deus esteja muito alto, distante, completamente inacessível, sendo muito santo, logo muito severo, temível e irascível, e assim, se não for por meio dos santos, humanos como nós, não é possível nenhum contato. Mas, ora, foi exatamente por isso que Deus se fez homem, sofreu todas as piores dores e se entregou em Sacrifício pelo nosso bem! Por amor, e um amor incomparável! Para ter intimidade conosco! É exatamente aí que está a grande novidade, a maravilhosa Boa Nova, o inédito do cristianismo!

Este Deus-homem plenamente amoroso é nosso doce Bom Pastor, manso e humilde de Coração, e é o mesmo que diz: "Se alguém me ama, guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos para ele, e faremos nele morada" (Jo 14,23). É o mesmo Deus que nos disse: "Haverá mãe que possa esquecer o seu bebê, que ainda mama, e não ter compaixão do filho que gerou? Contudo, ainda que ela se esquecesse, Eu jamais me esquecerei de ti!" (Is 49,15). Deus quer intimidade conosco! Cristo bate à porta, ansioso para cear conosco! E nós, negligenciaremos tal Amor? Dispensaremos a intimidade com Ele?


Uma coisa, uma coisa; outra coisa, outra coisa

Chegamos assim à conclusão de todas as considerações expostas até aqui. Na doutrina cristã e católica autêntica, Jesus Cristo é e sempre foi o Centro, o Alfa e o Ômega de todas as devoções, de todo o amor e de toda a fé, ainda que os santos de Deus, especialmente a santíssima Virgem Maria – Refúgio dos pecadores, Porta do Céu, Tabernáculo da Nova e Eterna Aliança – sejam excelentes auxílios para cada um de nós. O fato de a Igreja ter, desde sempre, cultuado com especial veneração Maria Santíssima, além de ter honrado, inspirado-se e pedido a cooperação dos Santos e Mártires de Deus, não significa, de modo algum, trair o cristocentrismo do culto exclusivo a Deus, por um motivo muito simples: toda devoção aos santos tem por objetivo o louvor e a adoração de Deus, em primeiro lugar, e de nos aproximar d'Ele. Eis a chave, a solução de todo dilema que parece entravar a devoção a Nossa Senhora.

Assim, quando você pergunta: "Qual a diferença" entre "hipervenerar" e adorar, se dizemos que adoramos somente a Deus, mas rezamos os louvores dos Salmos, que foram compostos como hinos de exclusiva adoração a Deus, em homenagem a Maria? Esta seria –, sem dúvida e sem nenhum traço de hipocrisia eu o reconheço –, uma pergunta difícil, talvez mesmo um problema sem solução e a prova definitiva da "idolatria" dos católicos, se não fosse este "pequeno detalhe": toda a devoção mariana (assim como quaisquer outras devoções) se apoia e se dirige, no fim e ao cabo, a Deus, que a quis honrar. Aí está a diferença. Todo e qualquer louvor que eu oferecer a Mãe de Deus (lembrando que foi Deus mesmo Quem a chamou assim, pela boca de Isabel) será, por trás de cada palavra, louvor a Deus, que a cumulou de tanta e tão incomparável Graça.

Gostaria de uma resposta do consulente, para saber se consegue entender isto, e se o entende profundamente. Por enquanto, muito obrigado pela oportunidade de entrar em águas tão profundas e –, humildemente espero eu, ancorado na Sã Doutrina da Igreja de Cristo –, ter ajudado a aclarar um tema difícil.

** Leia a segunda parte deste estudo
ofielcatolico.com.br

Saudosistas de um futuro (melhor) que se anuncia!


Por Dom Henrique Soares da Costa

JÁ ESCUTEI MUITÍSSIMAS vezes os incomodados com os jovens que desejam a grande Tradição da Igreja e rejeitam o tanto de secularização e desmantelo em que nos encontramos, particularmente no tocante à liturgia, à doutrina e à moral. Irritados, rotulam esses jovens como "alienados", "clericais", "reacionários", "autoritários"… Ridicularizando, esses incomodados acusam esses jovens de terem saudade do que não viveram.

Pois eu digo: há, sim, alguns exageros e até algumas mentalidades patológicas de reacionarismo atávico; mas não é este o caso da grande maioria desses jovens: eles estão mesmo é cansados de tanta secularização, de tanta ideologia liberal, de tanto imanentismo preconceituoso, de tanto relativismo, de tantas arbitrariedades, de tanta falta de piedade. 

Eles não são saudosistas patológicos: têm, sim, uma saudável nostalgia daquilo que está no seu DNA: a verdadeira fé católica, o verdadeiro espírito católico, as verdadeiras atitudes de um católico! Já Paulo VI constatava, com imensa tristeza, que um tipo de mentalidade não católica havia entrado na Igreja Católica após o Vaticano II. Somente quem perdeu o sentido da Tradição e desconheça o que seja o sensus fidei (= o sentido/instinto da fé) ou o sensus fidelium (= o sentido de fé que os fiéis possuem por ação do Santo Espírito) pode apelar para um argumento tão raso quanto este, de chamar "saudosistas do que não viveram" aos jovens que trazem no seu "DNA espiritual" dois mil anos de vida cristã.

É bom que estejamos bem atentos: se tantos jovens – padres e seminaristas ou leigos – desejam mais retidão, coerência doutrinal, disciplina e seriedade nas coisas da Igreja é porque a ideologia do "espírito do Concílio" (que pouco ou nada tem a ver com a letra e com a real intenção do Concílio) fracassou e está devastando a Igreja: ao invés de uma primavera, colocou-nos num triste e frio inverno.

Mas, o Concílio Vaticano II ainda será sim uma primavera na Igreja, quando, levadas pelo vento, as folhas secas do “espírito do Concílio” caírem todas e despontarem, como já despontam, os brotos de uma equilibrada e fiel vivência do VII no sulco da grande Tradição da Igreja!

Esses jovens incômodos e esses movimentos críticos da bagunça aí presente são sinais efetivos desse despertar! 

Podem ocorrer exageros? Claro que podem! Podem haver reações mesquinhas e pouco evangélicas? Sem dúvida alguma! Podem existir pessoas desequilibradas e metidas a cruzados da Tradição, quando são somente apegadas a costumes, a tradições que não exprimem a grande Tradição? Certamente! Mas nada disso justifica refutar ouvir, rejeitar pensar nas legítimas questões que tantos e tantos jovens generosos, sinceramente católicos, colocam sobre os rumos que muitos dão à Igreja, escudando-se numa interpretação unilateral do Concílio Vaticano II!

Não aconteça que falemos tanto em acolher os jovens  jovens por nós idealizados  e tratemos a pontapés os jovens reais, concretos, que, sedentos, procuram na Igreja e nos seus pastores quem lhes dê a Vida em Cristo Jesus!

Eis aí: o DNA católico está vivo; por obra do Espírito do Ressuscitado, nunca morrerá! E esses jovens  e tantos adultos  são prova disto.


** Leia também: 'O que respondi no Facebook: Tradição, tradicionalismo e a arrogância da juventude'
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Tempestade


CARÍSSIMOS LEITORES e irmãos em Cristo Jesus, aqui Henrique Sebastião, fundador e diretor deste singelíssimo apostolado. Nas duas últimas semanas (desde as festas de fim do ano 2016), dias em que nossa fraternidade observou um breve recesso, com seus membros não necessariamente descansando, mas tentando ao menos diminuir o ritmo da rotina massacrante do nosso cotidiano de estudos e trabalho ininterruptos, eu particularmente tive tempo para meditar sobre um assunto delicado. Devo dizer que, como homem das letras e de comunicação desde a adolescência, e eterno estudante da Filosofia, procuro escolher bem as palavras, pelos seus sentidos reais. E, sim, a palavra "delicado" descreve bem a situação a que quero me referir.

Pensei e refleti muito, implorando intimamente a Deus –, o Deus Amor-Criador incompreensível, a Quem por tantas e tantas vezes sou tão infiel e ingrato –, que me guiasse na decisão de falar ou não sobre um certo assunto por aqui. Prefiro sempre ignorar as questões polêmicas, quando são inúteis, quando não edificam nem servem para instruir os fiéis católicos e/ou, ao contrário, semeiam a confusão, a divisão ou a discórdia. Neste caso, porém, simplesmente ignorar seria omitir informação sobre algo realmente muito importante que vem acontecendo no seio da Igreja, envolvendo a mais alta hierarquia, e que vem transformando o panorama eclesial dos nossos tempos. Penso que não seria honesto de nossa parte – se é que somos apostolado católico – simplesmente agir como se nada acontecesse. Seria, talvez, agir conforme o "politicamente correto" que tanto criticamos.

"O Fiel Católico" nunca foi e nem pretende ser jamais – e se o bom Deus quiser, nunca será – o que chamam "politicamente correto"; esta, na verdade, é uma desgraça dos nossos tempos, que impede as pessoas de fazer escolhas reais, dizendo abertamente o que pensam; um tenebroso entrave que não as deixa tomar decisões importantes e simplesmente dizer: "Sim, sim; não, não". Hoje, somos praticamente obrigados a gostar (ou dizer que gostamos) de tudo igualmente, e apenas declarar alguma preferência já é dar motivo aos que preferem diferente que se sintam "ofendidos"... Aliás, os que mais berram em favor da tolerância, da diversidade e do respeito pelo outro são os que menos admitem discordância.

A desgraça começa a se tornar realmente preocupante, porém, quando o vício infecta a própria Igreja. Em uma entrevista concedida ao semanário francês "Homme Nouveau", ao finalzinho do ano passado, o exemplar cardeal Robert Sarah já exteriorizava a sua preocupação pela grande confusão que reina no mundo católico dos nossos tempos, inclusive entre bispos (valha-nos Deus, que deveriam ser os guardiões máximos da ortodoxia da doutrina), acerca da doutrina (sim!) da Igreja.


Cardeal Sarah

Segundo noticiosos como "La Nuova Bussola" e "InfoCatolica", o Cardeal declarou que se sente chamado a intervir oficialmente –, como Prefeito da Congregação para o Culto Divino e Disciplina dos Sacramentos –, já que a grave desorientação atual implica o Matrimônio, a Penitência e a própria Eucaristia. Ainda segundo o Cardeal, a confusão que vivemos extrai a sua seiva da falta de formação que, lamentavelmente, afeta seus próprios irmãos no Episcopado(!).

Sarah destacou que cada bispo, ele mesmo antes de todos, in primis, está vinculado à Doutrina do Matrimônio entre homem e mulher, monogâmico e indissolúvel, que Cristo restaurou em sua forma original e no qual se encontra o bem do homem, da mulher, dos filhos que darão continuidade ao próprio gênero (aqui sim cabe a palavra) humano.

Sarah enfatizou que esta verdade não pode deixar de ter consequências a respeito de ideias muito em voga nos nossos dias, como, por exemplo, a de admitir-se à santa Comunhão aqueles que vivem em concubinato ou equiparar a dignidade da família abençoada por Deus às duplas de pessoas do mesmo sexo que simplesmente vivem juntas:

A Igreja inteira se manteve sempre firme no fato de que não se pode receber a Comunhão quando se é consciente de haver cometido pecado grave, um princípio que tem sido confirmado definitivamente pela encíclica Ecclesia de Eucharistia de São João Paulo II. (...) Nem sequer um Papa pode dispensar desta Lei divina
(Cardeal Robert Sarah)1


Confusão e dubia


Robert Spaemann

Já um dos mais destacados filósofos católicos da Alemanha, o prof. Robert Spaemann (professor emérito da universidade de Munique, filósofo especialista em Ética cristã, Bioética e direitos humanos e confidente de Bento XVI) saiu em defesa dos quatro Cardeais – aqui, afinal e sem alarde, entramos no âmago do assunto que não quer calar – que pediram ao Papa Francisco que esclarecesse as ambiguidades da Exortação Apostólica Amoris Laetitia a respeito dos Sacramentos para divorciados recasados. "É deplorável que apenas quatro Cardeais tenham tomado a iniciativa em relação a este tema", disse.

De fato, sobre a dubia apresentada pelos cardeais Walter Brandmüller, Raymond L. Burke, Carlo Caffarra e Joachim Meisner, Spaemann destacou, em entrevista ao diário italiano "Nuova Bussola Quotidiana" (12/016), que os quatro têm autoridade e razão em dar a conhecer publicamente a sua petição, para abordar a perplexidade que a Amoris Laetitia criou, mesmo entre o episcopado. Spaemann já havia expressado sua preocupação pela ambiguidade da Exortação, classificando-a como uma "ruptura com a Tradição": "Com a dubia, os Cardeais assumem o seu dever de apoiar com o seu conselho, na medida em que são 'senadores' da Igreja junto com a pessoa do Santo Padre".

Recentemente, o Prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o cardeal Gerhard Ludwig Müller, sugeriu que o Papa poderia consultar a sua congregação para resolver a ambiguidade. Quanto ao silêncio do Sumo Pontífice, que até agora não respondeu aos Cardeais, Spaemann escreveu: "A negativa do Papa em responder ao chamado dos quatro Cardeais me enche de grande preocupação, já que, de alguma maneira, o Magistério supremo neste caso está sendo degradado. O Papa tem, claramente, aversão a estas decisões, que requerem um 'sim' ou um 'não' direto".

Spaemann insistiu em que o caminho de Cristo carrega uma clara distinção entre verdadeiro e falso: o Senhor da Igreja sempre deu a seus discípulos a resposta clara a decisões deste tipo. À pregunta específica sobre o adultério, Ele sacudiu os Apóstolos com a simplicidade e clareza do seu Ensinamento"2.


John Finnis (PhD por Oxford)

O brilhante professor Spaemann não está só. Longe disso. Outros titãs do pensamento teológico o acompanham. Os prestigiosos John Finnis e Germain Grisez3 também pediram formalmente, em carta aberta ao papa Francisco, que aclare e condene com objetividade as interpretações incorretas de Amoris Laetitia, que não são conforme o Magistério da Igreja; mais do que isso, pediram ao corpo dos bispos que se aderisse à sua petição.

Da carta enviada ao Papa, que igualmente não teve resposta, consta o trecho seguinte:

Quando um bispo atua in Persona Christi, cumprindo seu dever de ensinar em matérias de fé e moral mediante a identificação de proposições às quais exige que os fiéis prestem seu assentimento, cabe presumir que tenta expor verdades que pertencem a um único e idêntico conjunto de verdades: primariamente, aquelas confiadas por Jesus à sua Igreja, e, secundariamente, aquelas necessárias para preservar as verdades primárias como invioláveis e/ou para expô-las com fidelidade. Posto que as verdades deste tipo não podem substituir-se ou anular-se entre si, deve presumir-se que as expressões do Papa ou de outros bispos proferidas ao ensinar in Persona Christi são coerentes entre si quando se as interpreta cuidadosamente. Em consequência, é um abuso de uma expressão magisterial de tal tipo pretender apoiar-se nela sem haver procurado interpretá-la antes desta maneira.4


Dom Athanasius Schneider

Não poderíamos deixar de acrescentar a este cenário a recente e impactante declaração de Dom Athanasius Schneider, bispo auxiliar de Astana, Cazaquistão, na Fundação Lepanto, que afirmou existir na Igreja de hoje “uma estranha forma de cisma, na qual muitos eclesiásticos guardam uma unidade formal com o Papa, por vezes, para o bem de suas próprias carreiras e por uma espécie de papolatria”, mas que, “ao mesmo tempo, romperam os laços com Cristo, a Verdade, e com Cristo, a verdadeira Cabeça da Igreja”. Fizeram-no ao negar a verdade do Matrimônio e ao aderir “a um evangelho da liberdade sexual”, que rompe com o Sexto Mandamento (assista à entrevista na íntegra – em francês). Pesado? Muito. Corajoso? Muitíssimo. Um gesto de admirável fidelidade ou de rebeldia? Rezemos pelo Papa e pela Igreja.


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1. LifeSiteNews, 'Pope’s exhortation is a ‘breach’ with Catholic Tradition: leading German philosopher', by Claire Chretien, disp. em:
https://www.lifesitenews.com/news/popes-exhortation-is-a-breach-with-catholic-tradition-leading-german-philos
Acesso 16/1/017.

2. Sensus Fidei/La Nuova Bussola/InfoCatólica, disp. em:
http://www.sensusfidei.com.br/2016/12/02/o-cardeal-sarah-manifesta-sua-preocupacao-pela-grande-confusao-que-reina-no-catolicismo/#.WH4wbPArKCg
Acesso 16/1/017

3. John Finnis é Professor Emérito de Direito e Filosofia Jurídica, universidade de Oxford; Membro da Academia Britânica (seções de Direito e Filosofia); Catedrático Biolchini Family, universidade de Notre Dame, Indiana; Membro da Comissão Teológica Internacional da Santa Sé 1986–91. Germain Grisez é Professor Emérito de Ética Cristã, universidade Mount St. Mary; Professor de Filosofia, universidade de Georgetown 1957–72 y; Campion College, universidade de Regina 1972–79; Professor Emérito de Ética Cristã Most Rev. Harry J. Flynn; Universidadee Mount St. Mary 1979–2009.

4. InfoVaticana, disp. em:
http://infovaticana.com/2016/12/10/3146196/
Acesso 16/7/017
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A covardia dos homens e a praga 'politicamente correta', ou: 'Maldito respeito humano!'


ENSINA UM ANTIGO adágio (atribuído ao Duque de La Rochefoucauld): "A fraqueza se contrapõe mais à virtude do que ao vício". Com esta frase, o papa Pio XI respondia às acusações de excessiva severidade[1]. Vivemos dias em que a frouxidão parece ser regra, e tergiversar é a conduta mais comum. Nestes momentos é mais do que necessário, aos cristãos, retomar a virtude da fortaleza.

Coragem não é a ausência de medo. O medo faz parte da natureza humana e, corretamente dirigido, é útil e vantajoso; pode salvar a sua vida, querido leitor, inclusive a sua vida eterna, espiritual. "O temor do Senhor", que o autor sagrado classifica como "o princípio da sabedoria" (Pr 9, 10), é uma consequência direta do verdadeiro amor que devemos a Deus. Se realmente aprendermos a amar a Deus incondicionalmente –, como é nosso dever e nossa salvação –, também temeremos perder a sua Amizade, isto é, a Comunhão com Ele ou a sua Presença em nossa alma.

Já dizia Santo Afonso de Ligório que "a vida presente é uma guerra contínua com o Inferno, na qual corremos, a cada instante, o perigo de perder a Deus"; assim, Deus mesmo nos concede a fortaleza, que ordena os nossos medos e nos auxilia a dizer "não" ao pecado e a todo o mal. Por outro lado, o que fazem as pessoas (cristãs ou não) ditas "politicamente corretas"? Elas também têm medo, como todos nós. Todavia  canalizam o seu medo – que deveria ser o de ofender a Deus – aos seus apegos (afetos) humanos. Trocaram o temor de Deus pelo temor de desagradar o mundo, de contrair inimizade com outros seres humanos. Não possuem e nem cultivam o "temor do Senhor", mas sim o "temor do mundo".

Esta ética invertida do "politicamente correto" é chamada, também, de "respeito humano". O medo maior de tais pessoas é perder o prestígio da opinião pública, dos colegas, dos seus seguidores nas redes sociais... Temem ser julgados pelos seus pares, mas não temem o Julgamento divino.

São milhões de seres humanos que se torturam a todo instante, imaginando o que os outros poderão pensar deles. Observe o leitor o modo de ser dos nossos políticos, dos nossos artistas, jornalistas, apresentadores de TV... os grandes formadores de opinião de nossos tempos, afinal. O que notamos? Que ninguém mais tem opinião a respeito de absolutamente nada; todos ou quase todos tornaram-se "politicamente corretos". Todo mundo acha tudo lindo, todo mundo aceita e "respeita" absolutamente tudo, e pior, para tanto muitos escondem-se atrás do princípio evangélico do não julgamento. Ninguém mais tem a coragem de dizer, simplesmente: "Não gosto disso" ou "Tal coisa não está certa". Repetem todos, tal qual autômatos: "Não sou ninguém para julgar"; "cada um sabe de si", ou "cada um na sua" e "eu respeito o direito que cada um tem, de ser e fazer o que quiser"...

Aliás, nunca fomos tão frágeis, psicologicamente falando: vivemos tempos em que não se pode emitir uma opinião sincera, publicamente, sobre qualquer assunto, porque se dissermos qualquer coisa a respeito de qualquer tema, como resultado imediato alguém ou algum grupo, em algum lugar, fatalmente vai se "ofender". Se eu disser que gosto do azul, rapidamente surgirão os defensores do vermelho, muito ofendidos, ameaçando me processar. Pelo nosso artigo de catequese católica, respeitoso, sim senhor, e meramente informativo sobre São Cosme e São Damião (leia aqui), por exemplo, recebemos múltiplas ameaças de processo! Ora, pessoas estão se sentindo "ofendidas" e nos ameaçando, simplesmente, por nós –, um apostolado católico –, estarmos pregando a doutrina católica(!).

Qual a nossa reação, diante de situações como esta? Agradecemos a Deus, e esperamos, de cabeça erguida e mão postas, por muito mais! Sentimo-nos honrados pelo privilégio de sermos uma voz a favor da Verdade, no meio desta multidão de covardes. Sim, o mundo ficou covarde, na medida em que os homens não se comportam mais como homens, mas como eternos bebês mimados e chorões. Os homens, jovens e velhos, se acovardaram diante do mundo e dos perigos da vida. Nunca antes vimos tantos homens, sorridentes e orgulhosos, confessando que são (e são mesmo!) dominados e mandados por suas mulheres(!). O antigo e execrável machismo deu lugar a uma espécie de "feminismo" ainda pior, porque doentio e torto, se é que podemos chamar assim, já que a (suposta) proposta original do feminismo era lutar pela igualdade entre os sexos, e não pela supremacia das mulheres, como ocorre agora.

O cenário é desolador. A perseguição física que os cristãos experimentam em países sem liberdade religiosa é comparável ao "assassinato da personalidade" que outros tantos (nós mesmos) sofremos nos ambientes supostamente mais livres da vida hodierna.

Em nossa época, o preço que deve ser pago pela fidelidade ao Evangelho já não é ser enforcado, afogado e esquartejado, mas muitas vezes significa ser indicado como irrelevante, ridicularizado ou ser motivo de paródia
(Bento XVI, Vigília de Oração para a beatificação do Cardeal Newman, 18/9/010)

Ainda assim, lembrou o atual Papa Emérito na mesma ocasião, “a Igreja não se pode eximir do dever de proclamar Cristo e o seu Evangelho como verdade salvífica, fonte da nossa felicidade última como indivíduos, e como fundamento de uma sociedade justa e humana”.

O que vivemos agora foi previsto há muito tempo. Mesmo que nos persigam, não podemos nos calar. Mesmo que nos ridicularizem, não podemos deixar de proclamar a Verdade, que é Cristo, com clareza e coragem. Em um mundo onde tantos advogam a cultura "politicamente correta", somos chamados à uma outra espécie de retidão: a de caráter e de honra; aquela que tem sua base na Mensagem do Cristo e no Magistério da sua Igreja.

O sermão de São João Maria Vianney, o santo Cura d'Ars, que reproduzimos abaixo, provavelmente nunca foi mais atual.



Não há nada, meus irmãos, de mais glorioso e de mais honorável para um cristão do que carregar o nome sublime de filho de Deus, de irmão de Jesus Cristo. Da mesma forma, não há nada de mais infame do que ter vergonha de manifestar isso quando surge a ocasião. Não, meus irmãos, não nos admiremos ao ver os hipócritas demonstrarem um exterior de piedade para atrair sobre si a estima e os louvores do homem, enquanto que seus pobres corações são devorados pelos pecados mais infames. Estes cegos gostariam de gozar das honras, sem ter o trabalho de praticar as virtudes que as propiciam e das quais são inseparáveis.

Além do mais, não nos admiremos ao ver bons cristãos esconder o tanto quanto podem suas boas obras aos olhos do mundo, temendo que a glória inútil se insinue em seu coração e que os vãos aplausos dos homens lhes façam perder o mérito e a recompensa. Entretanto, meus irmãos, onde encontraremos uma covardia mais criminosa e uma abominação mais detestável do que a daqueles que, professando crer em Jesus Cristo, na primeira ocasião violam as promessas que lhe fizeram, sobre as fontes sagradas do Batismo? Ah! O que nos tornamos, quando agimos assim? Quem é Aquele que renegamos? Aí de mim!, abandonamos nosso Deus, nosso Salvador, para nos dispor entre os escravos do demônio, que nos engana e que busca apenas a nossa perda e a nossa infelicidade eterna. Ó, maldito respeito humano! Como arrastas almas para o inferno!

(...)
Entretanto, vocês me dirão agora: 'Quem são aqueles que se tornam culpáveis deste respeito humano?'. Inicialmente direi, com São Bernardo, que por qualquer lado que consideremos o respeito humano, que é a vergonha de cumprir os deveres da Religião por causa do mundo, todos nos mostram desprezo e cegueira. Digo, meus irmãos, que a vergonha de fazer o bem, o medo de ser desprezado ou repreendido por alguns ímpios infelizes ou alguns ignorantes, é um desprezo terrível que fazemos da Presença do Bom Deus, diante do qual estamos. Por que é, meus irmãos, que estes maus cristãos ficam bravos com vocês e fazem de vossa devoção algo ridículo? Meus irmãos, eis a verdadeira razão: é porque, não tendo a força de fazer o que vocês fazem, vocês incitam o remorso de suas consciências; entretanto, estejam certos de que, no coração, eles não vos desprezam, ao contrário, eles vos estimam. Quando eles precisam de um bom conselho, ou de pedir uma graça junto do bom Deus, não é àqueles que agem como eles que irão recorrer, mas àqueles que eles repreenderam, ao menos em palavras. Você tem vergonha, meu amigo, de servir ao bom Deus, temendo ser desprezado pelo mundo?[2].

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1. 'Pio XI, el papa de los desafíos', em La Stampa, Vaticano Insider, disp. em:
http://www.lastampa.it/2011/04/26/vaticaninsider/es/vaticano/po-xi-el-papa-de-los-desafos-LiMIhS0CoK9M5dAhOibpXJ/pagina.html
Acesso 13/1/017


2. Sermons du vénérable serviteur de Dieus, São João Maria Batista Vianney, ('Cura d'Ars').
Tome Ie, Librarie Victor Lecoffre, Paris, 1883.

  • Com o apostolado 'Sou Católico, os incomodados que se convertam', disp. em: https://www.facebook.com/notes/sou-cat%C3%B3lico-os-incomodados-que-se-convertam/maldito-respeito-humano-serm%C3%A3o-de-s%C3%A3o-jo%C3%A3o-maria-vianney/821454187996724
    Acesso 12/1/017
  • Ref.: 'Ou o martírio ou o inferno', equipe Christo Nihil Praeponere, disp. em:
    https://padrepauloricardo.org/blog/ou-o-martirio-ou-o-inferno#02
    Acesso 13/1/017.
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