Nosso Senhor se sacrificou "por muitos" ou "por todos"?


NAS PASSAGENS DAS SAGRADAS Escrituras que narram a instituição da Eucaristia durante a Última Ceia, sempre reforçada na Liturgia cristã (cf. Mt 26,26-28; Mc 14,22-24), encontramos a formulação que se traduz de forma exata com a palavra "muitos". Nosso Senhor nunca disse que entregava seu Corpo e Sangue "por todos", mas por muitos:

Tomou depois o cálice e, depois de dar graças, deu-o-lhes, dizendo: "Bebei dele todos; porque este é o meu Sangue da Nova Aliança, que será derramado por muitos para remissão dos pecados". (Mt 26,27s)

Enquanto comiam, tomou Jesus o pão e, depois de dar graças, partiu-o e deu-o a eles, dizendo: "Tomai; este é o meu corpo." Tomou depois o cálice e, depois de dar graças, deu-o a eles; e todos beberam dele. E disse-lhes: "Este é o meu Sangue da Nova Aliança, que será derramado por muitos. (Mc 14,22ss)

    Em outras passagens, porém, a sagrada Bíblia sugere que o Sacrifício de Nosso Senhor foi universal, dado pela salvação de todos, indistintamente, como em 2Cor 5,14-15, 1Tm 2,5s e 1Jo 2,2. Como explicar essa aparente contradição?     De fato, trata-se de questão muito simples: o Sacrifício foi feito por todos e, certamente, com potencial superabundante para restaurar a humanidade inteira. Acontece, todavia, que muitos, por livre opção e movidos por diversas motivações, escolhem não aceitar o dom da vida, dado por Deus gratuitamente. Estes, por sua própria vontade, não desfrutarão da mesma sorte que os Santos, preferindo recusar o Cálice da Salvação.     Em passagens como Gl 2,19-20 e Rm 6,6 vemos que a participação mística dos cristãos na Morte e Ressurreição de Cristo, que se dá mediante a conversão e inclusão no Corpo Eclesial, o Corpo Místico do próprio Cristo, é condição essencial para que participemos da mesma salvação, sendo este um tema central na Teologia do Sacramento do Batismo, como vemos em Rm 6,3-4, que diz com todas as letras que somos batizados na morte de Cruz do mesmo Cristo — morte para o pecado e renascimento para a vida eterna.     São Próspero de Aquitânia esclareceu com propriedade e didatismo o assunto, em poucas palavras:

Não é crucificado com Cristo aquele que não é membro do Corpo de Cristo. Quando, portanto, diz-se que nosso Salvador foi crucificado para a redenção do mundo inteiro, por causa da verdadeira elevação da natureza humana que Ele possibilitou, ainda assim pode-se dizer que Ele foi crucificado apenas por aqueles a quem sua Morte foi proveitosa. (...) Diverso, portanto, é o destino daqueles de quem se diz: "O mundo não o conheceu" (Jo 1,10).

Texto latino original: 

Non est autem crucifixus in Christo, qui non est membrum corporis Christi, nec est membrum corporis Christi, qui non per aquam et Spiritum sanctum induit Christum. Qui ideo in infirmitate nostra communionem subiit mortis, ut nos in virtute ejus haberemus consortium resurrectionis. Cum itaque rectissime dicatur Salvator pro totius mundi redemptione crucifixus, propter veram humanae naturae susceptionem, et propter communem in primo homine omnium perditionem: potest tamen dici pro his tantum crucifixus quibus mors ipsius profuit (...) Diversa ergo ab istis sors eorum est qui inter illos censentur de quibus dicitur; Mundus eum non cognovit.  (Responsiones ad Capitula Gallorum, Capitulum IX, Responsio, PL 51:165.)

** O "Responsiones ad Capitula Gallorum" é uma obra de São Próspero de Aquitânia, Santo Patrono de nosso apostolado — teólogo destacado e discípulo leigo de Santo Agostinho, chamado Doutor da Igreja pelos Cônegos Regulares de Latrão —, escrita por volta do século V. O título destes escritos pode ser traduzido como "Respostas aos Capítulos dos Gauleses" e refere-se a uma resposta às objeções levantadas por teólogos da Gália (atual França) contra diversas doutrinas ortodoxas da Santa Igreja, particularmente sobre questões como a Graça, o pecado original e a predestinação. Esses "capítulos" eram uma série de proposições ou críticas elaboradas por opositores, possivelmente influenciados por ideias semipelagianas, que rejeitavam aspectos essenciais da teologia agostiniana.

    Na obra, Próspero defende Santo Agostinho, argumentando que a Graça de Deus é essencial para a salvação e que a vontade humana, por si só, não é suficiente sem a intervenção divina. Ele responde a cada objeção de forma sistemática, mantendo-se fiel às definições estabelecidas por seu mentor e, posteriormente, pelo Magistério da Igreja, com o objetivo de esclarecer controvérsias e pontos ainda obscuros da Sã Doutrina, protegendo inclusive a memória de seu mestre contra acusações injustas. O texto reflete o contexto dos intensos debates teológicos na Igreja ainda jovem, e mostra Próspero como o teólogo de alta estatura que foi.

    Responsiones ad Capitula Gallorum é, assim, um documento importantíssimo para a compreensão das controvérsias teológicas da sua época, na qual se lançavam as raízes da Teologia cristã e católica, sendo preservada em coleções como a Patrologia Latina.


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    Um fato pouco conhecido sobre nosso Patrono: o importante axioma LEX ORANDI, LEX CREDENDI, máxima universal da Igreja que vem sendo citada e repetida há séculos, e que continua aparecendo em documentos da Igreja e em diversas obras católicas, tanto devocionais quanto teológicas de grande valor[1], é da autoria de São Próspero de Aquitânia.

    A forma completa da citação é “Legem credendi lex statuat supplicandi”, ou seja, “A lei da fé é determinada pela lei da oração” (Próspero usou o termo sinônimo ou equivalente lex supplicandi no lugar de lex orandi). Pois a oração da Igreja, segundo ensina esse mestre da Fé, é uma fonte autorizada de Teologia, na medida em que a salvação vem inteiramente por iniciativa de Deus. Assim é que sempre a Igreja sempre rezou, em sua liturgia, pela conversão dos infiéis, sejam judeus, islâmicos, hereges, cismáticos e todos os que não buscam a verdadeira Fé.

    O axioma Lex orandi, lex credendiusado tantas vezes por autores consagrados, infelizmente, raramente vem acompanhado da citação de seu autor e, inclusive, muitas vezes é equivocadamente atribuído a outros autores. 


[1] Um documento oficial da Santa Sé do século V, o Indiculus, que era uma compilação de todas as declarações autorizadas dos Papas sobre o assunto da Graça, já o continha. (Indiculus, cap.8; Denz., n.246 [Journal by the Slaves of the Imaculate Heart of Mary, St. Benedict Center, N. H., disp. em: catholicism.org/lex-orandi-lex-credendi.html – acesso 7/7/2025]).

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Fonte:
"Vicifons — Wikisource, disp. em: https://la.wikisource.org/wiki/Responsiones_ad_capitula_Gallorum
Acesso 7/7/2025.

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