O celibato sacerdotal: sua história e seus fundamentos teológicos

CONFORME HAVÍAMOS prometido ao leitor Luis Eduardo Ribeiro, passamos a publicar um estudo bem mais completo sobre a questão do celibato sacerdotal, que, por requerer uma análise eivada de muitos detalhes, com esclarecimentos pormenorizados e citação de dados históricos, evidentemente não foi completamente esclarecida em nosso artigo anterior intitulado "Por que o celibato sacerdotal, se S. Pedro era casado?".

Em nossa pesquisa, acabamos por nos deparar com o precioso e exaustivo estudo do Exmo. e Revmo. Cardeal Alfons Maria Stickler, de saudosa memória (1910–2007), completíssimo e já traduzido pelo Revmo. Pe. Anderson Alves (Diocese de Petrópolis) para o portal "Presbíteros" (Opus Dei), que de fato nos parece ter dito tudo o que há para se dizer sobre o assunto. A partir desta, portanto, publicamos o referido estudo (por ser longo, em três partes), acrescido ainda de outras notas nossas, na tentativa de lançar uma luz definitiva sobre o tema. Rogamos a Deus para que seja útil.


CELIBATO ECLESIÁSTICO: HISTÓRIA E FUNDAMENTOS TEOLÓGICOS

I. Introdução

Cardeal Alfons
Maria Stickler
No debate sobre o celibato dos ministros da Igreja Católica, que regressa sempre de novo e que tem se intensificado nos últimos tempos, encontramos as mais variadas opiniões, especialmente no que se refere à sua origem e desenvolvimento na Igreja Ocidental e Oriental. Essas opiniões vão desde a convicção de sua origem divina até de que se trata, – especialmente no caso da disciplina, mais restrita, da Igreja latina, – de uma mera instituição eclesiástica. Da disciplina da Igreja Latina, se afirma frequentemente que a obrigatoriedade do celibato só poderia ser constatada desde o século IV em diante; para outros, ela foi adotada no início do segundo milênio, concretamente a partir do II Concilio de Latrão em 1139.

Essas opiniões tão distantes entre si, e as razões e premissas que se alegam para sustentá-las, permitem constatar a existência de uma significativa imprecisão no conhecimento dos fatos e das disciplinas eclesiásticas a esse respeito, e ainda mais sobre os motivos do celibato eclesiástico. Esta imprecisão é verificada inclusive em algumas declarações no ambiente eclesiástico, alto ou baixo.

Parece, pois, necessário para alcançar um conhecimento seguro desta tão criticada Instituição, esclarecer os fatos e as disposições da Igreja, desde o início até hoje, e analisar os seus fundamentos teológicos. É evidente que este objetivo, se quisermos que a nossa exposição tenha validade científica, só será alcançado a partir de um conhecimento atualizado das fontes e da bibliografia sobre a questão.

Neste sentido, convém notar que, nos últimos tempos, foram alcançados importantes resultados sobre a história do celibato eclesiástico, no Ocidente e no Oriente. Mas tais resultados ou ainda não entraram na consciência geral ou são silenciados, pois se considera que poderiam influenciar de uma forma não desejada em dita consciência.

Esta exposição sintética irá acompanhada de um dispositivo científico que se limita ao essencial e que permite, junto ao controle das afirmações feitas, um eventual aprofundamento posterior no seu conteúdo.

A descrição da evolução histórica da questão, tanto na Igreja ocidental como na oriental, irá precedida de uma parte na qual, acima de tudo, se fará um esclarecimento do conceito de celibato eclesiástico que está na base das obrigações que impõe, para em seguida indicar o método exigido para chegar, – em uma adequada apreciação do tema, – a conclusões seguras. A última parte será dedicada às bases ou fundamentos teológicos do celibato, cujo desenvolvimento é cada vez mais necessário.



II. Conceito e Método

• Significado do conceito do celibato: a continência.

A primeira e mais importante premissa para se conhecer o desenvolvimento histórico de qualquer instituição é a identificação do verdadeiro significado dos conceitos sobre os quais se baseia. No caso do celibato eclesiástico, foi oferecida de maneira clara e concisa por um dos maiores decretistas: Huguccio Pisa, que na sua conhecida Summa, composta aproximadamente em 1190, começa o comentário ao tratado do celibato com estas palavras: “(...) para tratar especialmente da continentia clericorum, ou seja, a que devem observar in non contrahendo matrimonio et in non utendo contracto".

Nestas palavras é mencionada, com a clareza desejável, uma dupla obrigação: a de não se casar e a de não usar de um casamento previamente contraído. Isto mostra que naquela época, ou seja, no final do século XII, ainda havia clérigos maiores que se tinham casado antes de receber a sagrada Ordenação.

A mesma Sagrada Escritura nos mostra que a Ordenação de homens casados foi, de fato, uma coisa normal, porque São Paulo escreve a seus discípulos Timóteo e Tito que tais candidatos deveriam ter se casado apenas uma vez1. Sabemos que pelo menos São Pedro esteve casado, e talvez houvesse outros Apóstolos, pois o próprio Pedro disse ao Mestre: “Nós deixamos tudo e te seguimos. Qual será nosso futuro?” E Jesus, em sua resposta, disse: “Em verdade vos digo que ninguém que tenha deixado casa, pais, irmãos, esposa (ou) filhos pelo Reino de Deus deixará de receber muito mais no mundo presente e a vida eterna no mundo futuro” (Lc 18,29-30).

Aparece já aqui a primeira obrigação do celibato eclesiástico, isto é, a continência de todo uso do Matrimônio posteriormente à Ordenação sacerdotal, da qual decorre tal obrigação. Nisto consiste realmente o significado do celibato, hoje quase esquecido, mas claro para todos durante o primeiro milênio, inclusive antes: a absoluta continência na geração de filhos, incluindo a permitida (inclusive devida) por ser própria do Matrimônio.

De fato, em todas as primeiras leis escritas sobre celibato, – conforme mostraremos por documentos na segunda parte, – fala-se da proibição de gerar filhos depois da Ordenação. Este fato demonstra que esta obrigação devia ser fortemente exigida para o grande número de clérigos anteriormente casados, e que a proibição do casamento tinha no início uma importância secundária. Esta última só passou para o primeiro plano quando a Igreja começou a preferir e, em seguida, a impor candidatos celibatários dentre aqueles que eram escolhidos quase exclusivamente dos aspirantes às sagradas Ordens.

Para concluir este primeiro esboço do significado do celibato eclesiástico, que foi chamado desde o início e com propriedade “continência”, é preciso esclarecer, rapidamente, que os candidatos casados podiam ser ordenados e renunciar à utilização do Matrimônio apenas com o consentimento da sua esposa, já que ela, por força do Sacramento recebido, possuía um direito inalienável à utilização do casamento contraído e consumado, que é indissolúvel. O conjunto de questões derivadas de tal renúncia será tratado na segunda parte.


• Orientações para a investigação sobre a origem e desenvolvimento do celibato eclesiástico

O segundo pressuposto para alcançar um conhecimento correto da origem e do desenvolvimento do celibato eclesiástico, – ao que podemos chamar simplesmente “continência” sexual, uma vez esclarecido o seu significado, – é tanto mais importante quanto melhor advertimos a variedade de opiniões sobre a origem e primeiro desenvolvimento da obrigação de continência, e pode ser explicado pelo fato de o método justo de investigar e expor a questão não ser observado.

Deve-se notar aqui que, em geral, cada campo científico tem a sua própria autonomia em relação aos demais, com base no seu objeto próprio e no método postulado por ele. É verdade que na investigação científica sobre ciências relacionadas existem regras comuns que devem ser observadas. Por exemplo, em uma investigação de caráter histórico não se pode prescindir da regra que prescreve uma crítica preliminar das fontes, que determine a autenticidade e a integridade destas, para se ocupar depois do seu valor intrínseco sobre essa base, ou seja, sobre sua credibilidade e valor demonstrativo.

Neste contexto, é absolutamente necessária a capacidade e a vontade de compreender e utilizar adequadamente documentos e seu conteúdo. Somente sobre esta base segura, – autenticidade, integridade, credibilidade e valor, – se pode desenvolver uma adequada hermenêutica ou interpretação das fontes.

Junto a estes pressupostos metodológicos gerais, é necessário também aplicar a metodologia especificamente requerida por cada ciência. A Historiografia Filosófica competente, por exemplo, exige um conhecimento adequado da Filosofia, bem como a Historiografia Teológica pressupõe o conhecimento da Teologia e a Historiografia da Medicina ou da Matemática requerem um conhecimento suficiente dessas ciências. Do mesmo modo, na Historiografia Jurídica não pode faltar o conhecimento do Direito e das suas exigências metodológicas próprias.

De acordo com o exposto, deve-se ter em conta que a história do celibato eclesiástico implica, em seu conteúdo e desenvolvimento, o Direito e a Teologia da Igreja. Por isso, se quisermos fazer uma boa hermenêutica dos testemunhos históricos (fatos e documentos), não se pode prescindir do método próprio do Direito Canônico e da Teologia. O significado e a necessidade dessas observações, que à primeira vista podem parecer abstratas, serão evidentes ao aplicá-las de modo concreto à questão que agora estudamos.


• Raízes do recente debate sobre as origens do celibato

Franz Xavier Funk
No final do século passado, tivemos uma áspera discussão sobre a origem do celibato eclesiástico, ainda recordada e influente. Gustav Bickell, filho de um jurista e ele mesmo orientalista, atribuía a origem do celibato a uma disposição apostólica, apoiando-se principalmente em testemunhos orientais. Respondeu-lhe Franz X. Funk, conhecido estudioso da história eclesiástica antiga, negando que se pudesse fazer tal afirmação, já que a primeira lei conhecida sobre o celibato remonta ao início do quarto século. Depois de um duplo confronto de escritos sobre o assunto, Bickell fez silêncio, enquanto Funk repetia uma vez mais, sinteticamente, seus resultados, sem receber resposta do adversário. Recebeu, pelo contrário, importante consenso de dois grandes estudiosos, como eram E. F. Vacandard e H. Leclercq. A autoridade e influência de suas opiniões, difundidas amplamente pelos meios de difusão (dicionários), concederam à tese de Funk um consenso considerável, que perdura até hoje.

Considerando o que acabamos de dizer sobre as premissas dos princípios metodológicos na investigação, deve-se notar que F. X. Funk, ao formular suas conclusões, não levou em conta, sobretudo, os critérios gerais de interpretação das fontes, algo realmente estranho para um estudioso altamente qualificado como ele sem dúvida era. Aceitou como bom, e utilizou como um dos seus principais argumentos contra a opinião de Bickell, a narração espúria sobre a intervenção do bispo e monge egípcio Pafnucio (o Confessor) no Concílio de Niceia em 325. E isso, ao contrário da crítica básica externa das fontes que, já antes dele, tinha afirmado repetidamente a não autenticidade desse episódio (o que está comprovado, como demonstraremos na quarta parte). Funk cometeu um erro metodológico ainda maior, embora menos culpável, ao aceitar apenas a existência de uma obrigação oficial do celibato, que tenha sido expressa através de uma lei escrita. O mesmo se pode dizer do historiador da teologia, Vacandard, e do historiador dos Concílios, Leclercq.


• A transmissão oral do direito

Hans Kelsen
Qualquer historiador do direito sabe que um dos teóricos com mais autoridade deste século, Hans Kelsen, disse explicitamente que é equivocada a identificação entre direito e lei, ius et lex. Direito (ius) é toda norma jurídica obrigatória, tanto se foi dada oralmente e através do costume, como se já foi expressa por escrito. Lei (lex) é, no entanto, toda disposição dada por escrito e promulgada de forma legítima.

Uma peculiaridade típica da lei, testemunhada durante toda a sua história, está na origem dos ordenamentos a partir das tradições orais e da transmissão de normas consuetudinárias (isto é, pertencentes aos costumes de um povo, aos hábitos de uma sociedade; que se fundamentam nos usos e costumes, na prática e não nas leis escritas) que lentamente são postas por escrito. Por exemplo, os romanos, expressão do gênio jurídico mais perfeito, somente depois de séculos tiveram a lei escrita das Doze Tábuas, por razões sociológicas. Todos os povos germânicos escreveram seus ordenamentos jurídicos populares e consuetudinários depois de muitos séculos desde a sua existência. O direito desses povos era, até então, não escrito e só eram transmitidos oralmente. Ninguém se atreveria a afirmar, contudo, que por isso tal ius não fosse obrigatório e que sua observância estivesse deixada ao livre arbítrio de cada indivíduo.

Como em qualquer ordenamento jurídico próprio de grandes comunidades, as disposições e obrigações da jovem Igreja foram, em grande medida, transmitidas apenas oralmente; ainda mais porque durante os três séculos de perseguição (embora intermitente) dificilmente poderiam ter sido fixadas as leis por escrito. De qualquer maneira, a Igreja possuía, já por escrito, alguns elementos de direito primitivo, e em maior medida do que outras sociedades jovens. Uma prova disso nos dá a Sagrada Escritura. São Paulo escreve, na verdade, em sua segunda Carta aos Tessalonicenses (2, 15) estas palavras: “Exorto, pois, irmãos, ficai firmes e guardai as tradições que haveis aprendido, tanto oralmente, tanto através de nossas Cartas”. E, mais ainda, na mesma Carta, reafirma depois: "Em Nome de nosso Senhor Jesus Cristo, apartai-vos de todo irmão que não anda segundo a Tradição que de nós recebeu” (2Ts 3,6).

Estas admoestações se referem, sem dúvida, às disposições obrigatórias expedidas não apenas por escrito, como foi expressamente afirmado, mas também ensinadas oralmente, e assim transmitidas. Então, quem somente admitisse disposições obrigatórias as que podem ser encontradas nas leis escritas, não estaria fazendo justiça ao método de conhecimento próprio da história dos ordenamentos jurídicos.


• Os postulados do dado teológico

O método apropriado para estudar os fundamentos teológicos da continência do clero deve ter em conta que, além de questões disciplinares e jurídicas, a continência também está ligada, no caso deles, a um carisma intimamente relacionado com a Igreja e com Cristo. Seu conhecimento e análise só podem ser feitos, consequentemente, à luz da Revelação e da elaboração teológica.

Como é agora bem conhecido, a Teologia medieval não se preocupou muito com questões jurídicas e disciplinares, nem do modo apropriado, mas se apropriou das discussões e das conclusões da canonística clássica, – também chamada “glosadores”, – então muito florescente. Os historiadores da Teologia Medieval constataram isso há bastante tempo, e, um olhar para a obra do príncipe da Escolástica Medieval confirma-o suficientemente. Esta realidade pode ser considerada também como a principal razão de que a continência do clero não foi tratada suficientemente, quer dizer, conforme a sua metodologia fundada na Revelação e nas suas fontes. Embora esta falta tenha sido já reparada em grande medida, hoje segue sendo necessário um maior aprofundamento nos fundamentos propriamente teológicos do nosso tema. Na última parte deste trabalho, procuraremos atender a essa exigência tão legítima.

** Continua...

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Nota:
1. Trata-se de uma questão muitíssimo mais simples do que pode parecer à primeira vista. A elucidação desta passagem está diretamente relacionada à ambientação e ao contexto geral do início da Igreja, quando, em primeiro lugar, evidentemente não havia ainda, formalizada, a regra do celibato sacerdotal como a conhecemos. Em segundo lugar, naquelas primeiríssimas gerações de cristãos, os bispos precisavam ser escolhidos dentre os mais santos e sapientes no grupo dos fiéis. Invariavelmente, – como é de se esperar, – estes eram homens mais velhos, que, naquelas comunidades recém-nascidas do judaísmo, eram obrigatoriamente casados e chefes de família (devido aos costumes dos judeus).
Observemos muito bem que o texto bíblico não está dizendo que o bispo precisa ser casado e ponto final. Diz, isto sim, que ele deve ser casado uma só vez (já que simplesmente não haviam homens celibatários à disposição para escolha): a ênfase da frase está na afirmação da indissolubilidade do casamento e, indiretamente, na castidade.
Ao contrário, se estivesse sendo dito, aí, que o bispo precisaria necessariamente ser casado, e mais ainda, que fosse esta uma espécie de regra perpétua da Igreja, como querem alguns, então seria uma contradição ao que o mesmo S. Paulo diz em sua 1ª Carta aos Coríntios (7, 8-9), ou seja, que é melhor aos que buscam a santidade que permaneçam solteiros do que se casem.

• Fontes e bibliografia na conclusão
www.ofielcatolico.com.br

Introdução à Bíblia ou às Sagradas Escrituras - estudo III

EM NOSSO ÚLTIMO estudo desta série vimos como a formação e canonização da Bíblia cristã que conhecemos hoje dependeu diretamente da autoridade da sagrada Tradição e do Magistério da Igreja. Veremos agora de que modos o SENHOR se utilizou destes dois instrumentos (Tradição e Magistério) para nos comunicar o que hoje temos como o Livro sagrado dos cristãos.


A Septuaginta ou Versão dos Setenta (LXX)

Durante o reinado de Nabucodonosor1, as Escrituras Sagradas hebraicas foram perdidas, por ocasião do cativeiro imposto ao povo judeu, que em aproximadamente 587 a.C. foi deportado de Jerusalém para a Babilônia. As Escrituras foram novamente constituídas no tempo do Profeta Esdras, durante o reinado de Artaxerxes.

O conjunto de manuscritos hebraicos mais antigos que chegaram até o nosso tempo é conhecido como Texto Massorético. Nesta compilação das Escrituras, o texto foi transcrito com a omissão das vogais. Com origem no séc. VI, o Texto Massorético possui este nome por ter sido desenvolvido por um grupo de judeus conhecidos como Massoretas; estes, deste então, tornaram-se os responsáveis em conservar e transmitir o texto bíblico hebraico.

Bem anterior ao Texto Massorético, conservou-se até nosso tempo a versão Grega das Escrituras Hebraicas conhecida como Septuaginta ou Versão dos Setenta (LXX). Vertida aproximadamente no séc. III a.C. para o grego a partir dos mais antigos manuscritos hebraicos (hoje não mais disponíveis), o valor histórico da Septuaginta é, como se pode facilmente supor, inestimável e de profundíssima importância não só para o estudo histórico-arqueológico do judaísmo e do cristianismo e para o conhecimento das coisas santas, como para a própria identificação do Cânon Bíblico Cristão.


Origem da Septuaginta

Ptolomeu II Filadelfo (287-247 a.C.), rei do Egito, encomendou especialmente para sua Biblioteca em Alexandria2 uma tradução grega das escrituras sagradas dos judeus. Esta foi a primeira tradução feita dos livros hebraicos para uma outra língua. A tradução do hebraico para o grego, segundo antiquíssima tradição, foi feita por 72 escribas durante 72 dias, – por isso o nome Septuaginta, – que significa literalmente “Tradução dos Setenta”.

Ptolomeu II Filadelfo
A primeira menção à versão da Septuaginta encontra-se em um escrito chamado “Carta de Aristeias”. Segundo esta carta, Ptolomeu II Filadelfo havia estabelecido recentemente uma valiosa biblioteca em Alexandria. Ele foi persuadido por Demétrio de Fálaro, este constituído o responsável pela biblioteca, a enriquecê-la com uma cópia dos livros sagrados dos judeus. Para conquistar as boas graças deste povo e por conselho de Aristeias (oficial da guarda real, egípcio de nascimento e pagão por religião), Ptolomeu emancipou 100 mil escravos de diversas regiões de seu reino. Enviou então representantes (entre os quais Aristeias mesmo) a Jerusalém, e pediu a Eliazar (Sumo Sacerdote dos judeus) para que fornecesse uma cópia da Lei, e judeus capazes de traduzi-la para o grego.

A embaixada obteve sucesso: uma cópia da Lei ricamente ornamentada foi enviada para o Egito, acompanhada por 72 peritos no hebraico e no grego (seis de cada Tribo3) para atender o desejo do rei. Estes foram recebidos com grande honra e durante sete dias surpree rsilvananderam a todos pela sabedoria que possuíam, demonstrada em respostas que deram a 72 questões; foram então levados para a isolada ilha de Faros e ali iniciaram os seus trabalhos, traduzindo a Lei, ajudando uns aos outros e comparando as traduções conforme iam terminando. Ao final de 72 dias, a tarefa estava concluída.

A tradução foi lida na presença de sacerdotes judeus, príncipes e povo, reunidos em Alexandria; foi reconhecida por todos e declarada em perfeita conformidade com o original hebraico. O rei ficou bastante satisfeito com a obra e a depositou em sua biblioteca.

Comumente se acredita que a Carta de Aristeias tenha sido escrita por volta de 200 a.C., 50 anos após a morte do Rei Filadelfo. Não há entre especialistas um consenso sobre a origem e autenticidade desta carta que, embora seja pela maioria considerada fantasiosa, provavelmente possua fundamento histórico oculto sob detalhes lendários. Por exemplo, hoje se sabe com certeza que o Pentateuco foi mesmo traduzido em Alexandria.


Difusão e revisões

Pelo fato de serem pouquíssimos os Judeus que ainda possuíam conhecimento da língua hebraica, especialmente após o domínio helenista (entre os séculos IV e I a.C.) onde o koiné (grego popular) era o idioma falado, a Septuaginta foi bem acolhida, principalmente pelos judeus alexandrinos, que foram os seus principais difusores entre as nações onde o grego era falado. A Septuaginta foi usada por diferentes escritores e suplantou os manuscritos hebraicos na vida religiosa4.

Em razão de sua grande difusão no mundo helênico (tanto entre judeus como também entre filósofos gregos e cristãos), as cópias da Septuaginta passaram a se multiplicar, dando origem a variações contextuais.

Orígenes, motivado pela necessidade de restaurar o texto à sua condição original, dá origem à sua revisão, que ficou registrada em sua famosa obra, conhecida como Hexápla5. Luciano, sacerdote de Antioquia e mártir, no início do séc. IV publicou uma edição corrigida de acordo com o hebraico; tal edição reteve o nome de koiné, edição vulgar, e, às vezes, é chamada de Loukianos, após o nome de seu autor.

Finalmente, Hesíquio, um bispo egípcio, publicou, quase que ao mesmo tempo, uma nova revisão, difundida principalmente no Egito.


Os Manuscritos

Os três manuscritos mais conhecidos da Septuaginta são: o Vaticano (Codex Vaticanus), do séc. IV; o Alexandrino (Codex Alexandrinus), do séc. V, atualmente no Museu Britânico de Londres; e o do Monte Sinai (Codex Sinaiticus), do séc. IV, descoberto por Tischendorf no convento de Santa Catarina, no Monte Sinai, em 1844 e 1849, sendo que parte se encontra em Leipzig e parte em São Petersburgo. Todos foram escritos em unciais, isto é, em letras maiúsculas.

O Codex Vaticanus é considerado o mais fiel dos três; é geralmente tido como o texto mais antigo, embora o Codex Alexandrinus carregue consigo o texto da Hexapla e tenha sido alterado segundo o Texto Massorético. O Codex Vaticanus é referido pela letra B; o Codex Alexandrinus pela letra A; o Codex Sinaiticus, pela primeira letra do alfabeto hebraico Aleph, ou S.


Os livros contidos na Septuaginta

Os livros presentes na Septuaginta, conforme a ordem original, são: Gênesis, Éxodo, Levítico, Números, Deuteronômio, Josué, Juízes, Rute, 1 Samuel (1 Reis), 2 Samuel (2 Reis), 1 Reis (3 Reis), 2 Reis (4 Reis), 1 Crônicas (1 Paralipômenos), 2 Crônicas (2 Paralipômenos), 1 Esdras, 2 Esdras (Esdras e Neemias), Ester, Judite, Tobias, 1 Macabeus, 2 Macabeus, 3 Macabeus, 4 Macabeus, Salmos, Odes, Provérbios, Eclesiastes, Cântico dos Cânticos, Job, Sabedoria, Eclesiástico (Sirac), Salmos de Salomão, Oséias, Amós, Miquéias, Joel, Obadias, Jonas, Naum, Habacuque, Sofonias, Ageu, Zacarias, Malaquias, Isaías, Jeremias, Lamentações, Baruque, Epístola de Jeremias, Ezequiel, Suzana6, Daniel, Bele o Dragão7.

Importante: inevitavelmente notamos que o conjunto de livros da Septuaginta é bem maior do que qualquer versão do AT disponível nas Bíblias Católica, Ortodoxa ou Protestante. O que isto necessariamente significa? Será que o catálogo da LXX corresponderia a um cânon bíblico conhecido e utilizado pelos antigos judeus? Jesus e os Apóstolos utilizaram este catálogo mais amplo de Escrituras Sagradas? Vejamos...


Iluminura medieval anônima retrata
Cristo ensinando na sinagoga

As Escrituras Sagradas utilizadas no tempo de Jesus

Frequentemente é veiculada a informação (principalmente em páginas da internet e livros de origem protestante) de que Jesus e os Apóstolos não utilizaram a versão grega da Septuaginta, mas que manusearam as Escrituras do AT em manuscritos disponíveis em hebraico8. Isto se deve, basicamente, ao fato da Septuaginta possuir livros considerados apócrifos pelas confissões protestantes. Desta forma, a tese propõe que Jesus e os Apóstolos não manusearam esta versão grega das Escrituras.

Os cristãos creem que Jesus foi concebido pelo Espírito Santo no ventre da Virgem Maria. A referência mais conhecida à doutrina da Concepção virginal de Maria está no Evangelho segundo S. Mateus 1,18-23.

Mateus, após relatar que a mãe do Senhor concebeu por obra do Espírito Santo, antes de coabitar com José, e que, então, um anjo do Senhor apareceu a José em sonhos para informar que este não deveria recusá-la como sua esposa, pois o Filho que ela concebera era Obra do Espírito Santo (cf. versículos 18 a 21), nos versículos 22 e 23, escreve: “Tudo isto aconteceu para que se cumprisse o que o SENHOR falou pelo profeta. Eis que a virgem conceberá e dará à luz um Filho, que se chamará Emanuel, que significa 'Deus conosco'”.

Mateus transcreve aqui Isaías (7,14). Conforme podemos observar, a tradução em língua portuguesa apresenta a expressão “Eis que uma virgem conceberá”.

Alguns pesquisadores defendem a tese de que Mateus citava Isaías 7,14 conforme a versão da Septuaginta. Como defesa, afirmam que na versão em hebraico, o adjetivo aplicado àquela que conceberá é almah, que significa "jovem", pois o adjetivo mais apropriado para virgem seria "b'tulah"; enquanto que na Septuaginta, o versículo apresenta o adjetivo grego parthenos, que significa virgem.

De fato, é possível o adjetivo almah significar “virgem”, e o termo b'tulah também pode significar “mulher casada” (cf. Joel 1,8). Por exemplo, “almah” aparece pelo menos sete vezes no AT: Gn 24,43; Ex 2,8; Sl 68,25; Pv 30,19; Ct 1,3; 6,8 e Is 7:14. Em todas as primeiras seis referências, tem o sentido de virgem ou mulher solteira que era virgem. Aliás, em Ct 6,8, o sentido de virgem é bastante claro: fala sobre 3 classes de mulheres: as rainhas, as concubinas e as donzelas ('almot', plural de 'almah'). A mesma Rebeca, que é chamada “'b'tulah', a quem varão não havia conhecido”, em Gênesis 24,16, é chamada, no mesmo capítulo de almah.


Há citações da Septuaginta no NT?

Vários estudos atestam que os Apóstolos e Evangelistas usaram a Septuaginta, “pois, como se sabe, muitas citações (e alusões) do Antigo Testamento no Novo Testamento procedem diretamente da clássica versão grega” (SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL, 2oo3, I). Das 350 citações que o NT faz do AT, pelo menos 300 provêm da versão grega (BÍBLIA, 1974, III; BIBLEREARCH, 2006).

Temos provas de que o Senhor Jesus usou a Septuaginta. Em Sua resposta ao diabo, em Mateus (4,4), Ele disse: “Está escrito: 'Não só de pão vive o homem, mas de toda palavra que procede da boca de Deus'”. O Senhor referiu-se a Deuteronômio 8,3, onde na versão hebraica a expressão usada é “da boca do SENHOR”, enquanto que a Septuaginta traz “da boca de Deus”.

Nos capítulos 6 e 7 do Livro dos Atos dos Apóstolos, lemos que Estevão foi levado ao Sinédrio9 “pela multidão (cf. At 6,12). Dirigindo-se a seus acusadores, conta-lhes como Jacó trouxe seus 75 descendentes para o Egito (cf. At 7,14-15). Porém os textos hebraicos dizem que Jacó trouxe 70 descendentes para o Egito (cf. Gn 46,26– 27; Dt 10,22 e Ex 1,5). O Sinédrio conhecia bem a Proibição divina de acrescentar ou retirar algo dos Livros sagrados (cf. Dt 4,2; 12,32; Sl 12,6-7 e Pr 30,6), mas não ousou acusar Estevão de estar pervertendo as Escrituras, ordenando matá-lo porque foi contraditado na defesa de Cristo.

A Septuaginta cita cinco nomes a mais que o Texto Massorético hebraico em Gênesis (46,20), onde Makir, filho de Manassés, e Makir, filho de Galaad (=Gilead, no hebraico), são apontados, posteriormente, como os dois filhos de Efraim, Taam (=Tahan, no hebraico) e Sutalaam (=Shuthelah, no hebraico) e seu filho Edon (=Eran, no hebraico).

Outro exemplo é o nome de um deus pagão citado por Estevão em At 7,43. Estevão citou-o como Renfão. Esta citação é de Amós 5,26. No texto hebraico o nome do deus é Quijum. Estevão citou a versão da Septuaginta, que traz Renfã e não o Quijum do texto hebraico. Isto significa que o uso da versão da Septuaginta era também comum entre os judeus da Palestina, derrubando a tese de que somente os judeus de Alexandria aceitavam esta versão.

Pelo fato de a Septuaginta ter sido amplamente usada pelos Apóstolos e presbíteros da primitiva Igreja, a Tradição Cristã conferiu-lhe lugar especial (SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL, 2003, V).


Trecho manuscrito do Livro de Isaías, Museu de Israel, Jerusalém
(dos manuscritos do Mar Morto)

As descobertas do Mar Morto

Partes da Septuaginta foram encontradas na Judeia, entre os manuscritos do Mar Morto, descobertos em Qumran, sendo anteriores ao ano 70 d.C. Alguns exemplares foram encontrados na caverna 4 (119LXXLev.; 120papLXXLev.; 121 LXXNum.; 122LXXDeut.), um texto não identificado da Septuaginta grega encontrado na caverna 9 (Q9), e existe um fragmento de papiro, escrito em grego, encontrado na caverna 7 (LXXExod.).

A caverna 7 produziu ainda muitos pequenos fragmentos em grego (da Septuaginta), cujas identificações permanecem em discussão ou sem classificação.

Em grego foram encontrados fragmentos de: 4Q478 [Tobias], 4Q383, 7QLXXEpJer. [Epístola de Jeremias]; em hebraico foram encontrados: uma cópia do livro do Eclesiástico [manuscrito 20Sir.], “A História de Suzana” (correspondente ao capítulo 13 do livro de Daniel) [manuscrito 4Q551] e fragmentos do livro de Tobias [manuscrito 4Q200]." Em aramaico foi encontrado um fragmento do livro de Tobias [manuscrito 4Q196-9].

Uma cópia do livro do Eclesiástico, em hebraico, foi encontrada nas ruínas de Masada e é datada como do início do século I a.C. Estas evidências comprovam que os livros deuterocanônicos eram conhecidos e manuseados pelos Judeus da Palestina.

Não é possível afirmar que todo conjunto de livros da Septuaginta foi considerado sagrado pelos judeus alexandrinos, judeus palestinenses ou por Jesus e seus Apóstolos. Só podemos afirmar que era conhecido e utilizado por todos eles por constar na versão bíblica por eles citada. O tempo levaria a sinagoga e a Igreja a escolherem alguns livros da Septuaginta como canônicos e a rejeitarem outros. Nesta decisão, a sinagoga saiu na frente, como veremos no próximo estudo desta série. 

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Notas:

1. Foi Reida Babilônia no séc. VI a.C.
2. Fundada por Alexandre, o Grande tornou-se o grande centro culturale comercial do império helênico.
3. Por ordem divina opovode Israel foi classificado em 12 Tribos, cada umatendo origem em dos filhos do Patriarca Jacó (cf. Gn49).
4. JAEGER, Werner. Cristianismo primitivo e paideia grega, Lisboa: Edições 70, 1991, p.19
5. Recebe este nome por dispor do texto do AT em 6 colunas distintas, cada uma conforme uma tradução (hebraico, a LXX, versão de Áquila, versão de Símaco, versão de Teodocião e outra de menor importância). Foi perdida, restando dela em nossos dias somente alguns fragmentos.
6. 'História de Suzana', que consta como apêndice do livro de Daniel nas Bíblias Católicas e Ortodoxas.
7. SOCIEDADE BÍBLICA DO BRASIL, Antigo Testamento Poliglota, hebraico, grego, português, inglês. São Paulo: Vida Nova, 2oo3
8. O Protestantismo de forma geral procura crer que o cânon hebreu já estava definido antes de Cristo e que corresponde à atual Bíblia Hebraica, uma tese que de modo algum se sustenta. Este assunto será abordado em postagem futura.
9. Conselho nacional que no tempo de Jesus tinha autoridade entre os judeus para julgar casos religiosos ou civis. Jesus foi condenado primeiramente pelo Sinédrio e depois levado a Pôncio Pilatos.

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Fonte:
LIMA. Alessandro Ricardo. O Cânon Bíblico: a origem da Lista dos Livros Sagrados, Brasília: ComDeus, 2007.
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Auge místico e morte de Tomás de Aquino


PODEMOS TER UMA noção mais profunda, por meio dos testemunhos apresentados em nossa última postagem, da perfeição daquilo que Santo Tomás de Aquino entendia por vida contemplativa. Esta, no seu último ano de vida, se acentuou e atingiu um ponto culminante. A este respeito, porém, passamos a palavra a João Ameal1, embora em sua narrativa ele se baseie também em Guilherme de Tocco2.

O último ano da vida de Tomás de Aquino é assinalado por diversos acontecimentos extraordinários que mostram como, de dia para dia, era cada vez mais irresistível o chamado às intimidades sobrenaturais.

Já no convento de Nápoles, frei Domingos de Caserta repara que Tomás desce de seu quarto antes das matinas e vai até à igreja. Apenas o sino toca e supõe os companheiros prestes a despertar, volta para cima, como se não quisesse ser descoberto.

Frei Domingos resolve um dia saber o que se passa. Levanta-se mais cedo e, ao ver o Doutor Angélico sair da cela, segue-o, oculto, à capela de São Nicolau. Aí surpreende o mestre dominicano imerso em profunda oração. Com grande espanto, observa que seu corpo se eleva no ar, dois palmos acima do nível do solo. Dentro de alguns momentos, na penumbra silenciosa da capela, soa uma voz misteriosa, que vem do crucifixo erguido no Altar:
Tomás, escreveste bem sobre Mim.
Que receberás de Mim
como recompensa pelo teu trabalho?"

De joelhos, transportado de fé, Tomás exprime na resposta a plenitude de seu ardor místico:
Senhor, nada, senão Vós!"
Depois de narrar esta cena prodigiosa, Tocco informa que o mestre trabalha então na terceira parte da Summa Theologiae, e pouco mais escreverá. Se o Senhor lhe fala de recompensa, é sinal do fim de suas canseiras.

De fato, não decorre muito tempo sem que Tomás atinja a maior altura de sua vida visível. É no dia 6 de dezembro de 1273, quando celebra a Missa, na mesma capela de São Nicolau. Bruscamente, opera-se nele grande mudança, que impressiona a todos os assistentes. Finda a Missa, não volta a escrever e deixa mesmo por acabar a terceira parte da Summa, logo após ter terminado o tratado sobre a Eucaristia.

Desgostoso, ao vê-lo cada vez mais afastado dos tratos habituais, observa-lhe o seu secretário, frei Reginaldo de Piperno:
Mestre, como abandonais uma obra tão vasta, que empreendestes para a Glória de Deus e iluminação do mundo?"

Tomás replica:
Não posso mais."
Pouco tempo depois, acompanhado de Reinaldo, vai o Doutor Angélico visitar sua irmã, a Condessa Teodora de Sanseverino, de quem é especialmente amigo. Estranha-o Teodora, que, surpreendida, indaga ao seu confidente: "Que é isto? Frei Tomás está tão distraído que mal me falou!". Piperno, melancólico, esclarece-a: "Anda assim desde a festa de São Nicolau. Deixou mesmo, por completo, de escrever." E torna a insistir, repetidas vezes, com o mestre, para que lhe explique a razão de sua apatia. Até que Tomás declara de novo, com mais firmeza e veemência:

Peço-te, pela caridade que tens agora por mim, que não transmitas a ninguém, enquanto eu viva, o que te disser."

E acrescenta, peremptório:
Tudo que escrevi até hoje, parece-me unicamente palha, em comparação com aquilo que vi e me foi revelado."3
Algumas semanas mais tarde, Tomás de Aquino foi convocado pelo Papa para se apresentar ao Segundo Concílio Ecumênico de Lião; junto com seu secretário Reginaldo e Tiago de Salerno, empreende uma viagem até à França.

No meio do caminho, próximo a Fossa Nova, Tomás fica doente; é acolhido no mosteiro cisterciense daquela cidade e aí vem a falecer.

Antes de falecer, voltou a manifestar-se mais uma vez sobre o ocorrido no dia 6 de dezembro do ano anterior; sobre este assunto, se Deus nosso Senhor o quiser e permitir, voltaremos a falar com mais lastro em momento apropriado.

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1. João Francisco de Barbosa Azevedo de Sande Aires de Campos (Santa Cruz, Coimbra, 23 de fevereiro de 1902 - Lisboa, 23 de setembro de 1982), conhecido pelo pseudônimo literário João Ameal, jornalista, escritor, político, e historiador de grande estatura, com vasta obra publicada e referência sobre Santo Tomás e o tomismo.

2. Guilherme de Tocco, Guillelmi de Tocco ou Guglielmo de Thoco (nascido entre 1240-50 e falecido antes de 1323) é o autor da mais importante biografia antiga de S. Tomás de Aquino, a «Ystoria sancti Thome de Aquino». Este livro tem o grande interesse de ser a história que serviu de base ao processo de canonização do teólogo.

3. Ameal, João: São Tomás de Aquino; Porto, Livraria Tavares Martins, 1956; pp. 143-5.
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Fonte bibliográfica:
ROSA, Antonio Donato. A Educação segundo a Filosofia Perene: orientação para pais e mestres segundo Tomás de Aquino e Hugo de S. Vitor. Cristianismo.Org.Br.
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Santo Tomás e a Vida Contemplativa


COMO FOI POSSÍVEL, em apenas 25 anos de magistério, numa época em que não havia imprensa, em que bibliotecas eram escassas e pequeníssimas e as viagens eram feitas a pé, uma atividade intelectual tão prodigiosa quanto a de Santo Tomás de Aquino?

Os testemunhos de sua época, que recolhemos principalmente da biografia de Guilherme de Tocco, seu discípulo, nos dão uma ideia de como ele estudava e trabalhava; podemos daí compreender de onde manava a fonte de suas colossais atividades, e termos uma compreensão inicial mais perfeita daquilo a que ele se referia quando falava da vida contemplativa.

Diz o biógrafo, contemporâneo de Tomás, – Guilherme de Tocco, – que:

Nada do que Tomás pôde ler, com a Iluminação divina, pôde deixar de explicar. No que fica visível que Deus o tinha escolhido para a investigação da verdade, pois o iluminou mais do que a todos os outros, pois nunca colocou pelo pecado obstáculos diante de Deus para que, através da oração, não pudesse buscar a verdade. De onde que Deus, enquanto ele vivia, mostrou a todos um evidente milagre, isto é, como em tão pouco tempo, nos seus 25 anos de magistério, duas vezes indo e voltando da Itália e Paris, pôde escrever tantos livros, discutir tão profundamente tantas questões e ensinar tantas coisas novas." 1

Este Doutor entregou-se para isto totalmente às coisas do alto, e foi contemplativo de um modo inteiramente admirável. Totalmente entregue às coisas celestes, na maior parte do tempo estava ausente dos sentidos, de tal modo que mais se supunha estar ele onde o seu espírito contemplava do que onde permanecia sua carne." 2

Ademais, durante o tempo da noite, dedicado pelos homens ao repouso, Tomás, após um breve sono, permanecia em seu quarto ou na igreja imerso em oração, para que orando merecesse aprender aquilo que deveria após a oração escrever ou ditar." 3

Todas as vezes em que queria estudar, disputar, ler, escrever, ditar, antes se entregava ao segredo da oração, para que encontrasse as coisas de Deus no segredo da Verdade; pelo mérito de sua oração, assim como se aproximava com as questões de que tinha dúvida, do mesmo modo saía dela ensinado." 4

Foi assim

(...) que escreveu um livro, intitulado Summa contra Gentiles, profundo pela sutileza e pela novidade das razões, em que mostrou de modo admirável o que já possuía pelo seu engenho e o que obtinha pela oração e pelo rapto da mente em Deus. De fato, frequentemente foi visto totalmente alheio aos sentidos, atento como sempre às Revelações divinas." 5

Indício certo de sua admirável memória era não somente o hábito da ciência, que ele possuía na alma tal como se a possuísse no livro; mas também aquela obra admirável que, a mando do Papa Urbano, de feliz memória, compôs sobre os quatro Evangelhos, em que citava de memória a maior parte das obras dos santos que ele tinha tido diante dos olhos, nos volumes que tinha lido em diversos mosteiros, todas as quais retinha em sua memória" 6

Como pôde compor tantos livros em tão breve tempo, Deus o mostrou admiravelmente por outros indícios. Este Doutor, de fato, algumas vezes ditava assuntos diversos a três e às vezes até a quatro escritores simultaneamente em seu quarto, de modo que parecia Deus infundir-lhe em sua mente diversas verdades simultaneamente, o que não poderia fazer ao mesmo tempo sem um milagre manifesto." 7

Tanta era a abstração da mente de Tomás, que às vezes não percebia estar sendo lesado em seu corpo. Certa vez os médicos acharam por bem cauterizar sua tíbia; ao que Tomás disse ao colega que estava consigo: 'Quando eles vierem com o fogo, faça-me o favor de me avisar'. Estando então no lugar em que deveria se realizar a cauterização, quando esta se iniciou, levantou-se a tamanha abstração que sequer percebeu o fogo que queimava sua perna; de fato, sequer moveu a perna do local em que estava." 8

Outra vez, estando Tomás em seu quarto a ditar um livro sobre a Trindade, tomou uma vela em sua mão e disse ao que escrevia: 'Seja o que for que vejas em mim, cuida-te de não me chamares'. Então, abstraído na contemplação, depois de uma hora a vela se consumiu e o fogo alcançou seus dedos, aí os tocando demoradamente sem que o Doutor os sentisse; ao contrário, continuou segurando o próprio fogo sem sequer um movimento dos dedos, até que ele por si só se apagou." 9

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Referências:
1. Guillelmus de Tocco: Vita Sancti Thomae Aquinatis, C. 17.
2. Ibidem, C. 43.
3. Ibidem, C. 29.
4. Ibidem, C. 30.
5. Ibidem, C. 17.
6. Ibidem, C. 17, 41.
7. Ibidem, C. 17. 8. Ibidem, C. 47. (53) Ibidem, C. 47.
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Fonte bibliográfica:
ROSA, Antonio Donato. A Educação segundo a Filosofia Perene: orientação para pais e mestres segundo Tomás de Aquino e Hugo de S. Vitor. Cristianismo.Org.Br.
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Notas biográficas sobre Santo Tomás de Aquino

'Triunfo de Santo Tomás de Aquino sobre hereges' (detalhe), 1489-91. Afresco, Basílica de Santa Maria sobre Minerva, Roma

O NASCIMENTO DE TOMÁS de Aquino ocorreu, com certeza, entre os anos 1225 e 1227, em Rocasecca, cidade próxima a Nápoles, Itália. Era Tomás filho do Conde Landolfo de Aquino e da Condessa Teodora, que viviam no castelo de Rocasecca, aparentados com a nobreza alemã e com as casas reinantes da Espanha e da França1.

A data correta do nascimento de Santo Tomás, entretanto, tem sido objeto de longos debates entre os estudiosos2. A posição mais comumente aceita, segundo João Ameal3, é a definida por P. Mandonnet em um estudo publicado na Revue Thomiste em 1914, segundo o qual Tomás teria nascido em 1225, em alguma data anterior ao dia 7 de março4.

Seu discípulo e principal biógrafo, Guilherme de Tocco, conta-nos uma curiosa história sobre seu nascimento, ouvida da filha da irmã de Santo Tomás:

Estando sua mãe, a senhora Teodora, – ilustre tanto pelos costumes como pela fama de seus pais, – no castelo de Rocasecca, situado nos limites da Campânia, visitou-a o irmão Buono, melhor pela vida e pela religião, que levava vida de eremita com vários outros em uma montanha próxima e era tido como santo pelos homens daquela região, dizendo-lhe: `Alegra-te, senhora, porque estás grávida, e darás à luz um filho, ao qual chamarás Tomás. Tu e teu marido pensarão em fazer dele um monge no mosteiro de Monte Cassino, no qual repousa o corpo de São Bento, com a esperança de que, promovido a elevado cargo, possa alcançar os grandes rendimentos desse mosteiro. Mas Deus disporá de modo diverso para com ele, pois será frade da Ordem dos Pregadores e já em vida tão famoso pela ciência e pela santidade que em seu tempo em todo o mundo não se poderá encontrar outro igual'."5

De fato, com a idade de cinco anos, Santo Tomás foi confiado à custódia dos beneditinos de Monte Cassino, que já à época tinham como educadores uma fama universal. Seu tio Sinibaldo era, ademais, o abade do mosteiro6. Sua permanência em Monte Cassino durou aproximadamente nove anos, até quando, estando Tomás com cerca de 14 anos, a abadia foi ocupada pelas tropas de Frederico II. Seu tio Sinibaldo devolveu-o ao castelo da família, para logo em seguida ser encaminhado à Universidade de Nápoles7.

"Que se sabe da vida de Tomás em Monte Cassino?", pergunta João Ameal. "Pouco, mas o bastante para desde logo ficar definido o seu perfil moral. Envolto no hábito negro dos beneditinos, ajuda à Missa, toma parte nas procissões e cerimônias da Igreja, aprende a ler em latim e a cantar os Salmos nos ofícios sagrados, diante do imenso antifonário do mosteiro cujas páginas volteia, uma a uma.

Aos dez anos, Tomás, que já lê e escreve corretamente, estuda os primeiros elementos de Latim, de Aritmética e de Gramática. Aos treze, conhece grande parte do Saltério, dos Evangelhos, das Epístolas de São Paulo. O abade Sinibaldo, seu tio e preceptor, encaminha-o também às obras primas da Patrística: os escritos morais de São Gregório Magno, as cartas de São Jerônimo, os fragmentos mais acessíveis de Santo Agostinho. Precocemente, contudo, mostra-se pensativo e taciturno. Dir-se-á que já pesavam no seu espírito, aberto muito cedo aos mais largos horizontes, as interrogações decisivas da metafísica.

Horas seguidas, queda-se em uma contemplação misteriosa. Certo dia, a um frade que lhe pergunta qual a razão de seu alheamento, responde, com um olhar que se perde em distâncias remotas: "Que é Deus?", episódio em que Guilherme de Tocco vê um nítido presságio"8.

Foi o próprio abade Sinibaldo que, "notando no jovem indícios tão certos e maduros da futura perfeição e as primeiras sementes da futura colheita das Escrituras", diz o biógrafo Guilherme de Tocco, "aconselhou Landolfo a enviá-lo a Nápoles para estudar"9.

Seguindo a orientação pedagógica de então, continua João Ameal10, consagra-se Tomás de Aquino ao estudo das chamadas Artes Liberais, divididas em dois grupos: as que constituem o Trivium, isto é, a Gramática, a Retórica e a Dialética; e as que constituem o Quadrivium, isto é, a Aritmética, a Geometria, a Astronomia e a Música.

Seu mestre no Trivium foi Pedro Martinus; seu mestre no Quadrivium foi Pedro da Irlanda, célebre por alguns comentários a algumas obras de Aristóteles que começavam a ser redescobertas pelo Ocidente cristão. "A influência exercida por este professor no espírito de Tomás foi profunda, principalmente porque", diz João Ameal, "foi ele quem atraiu pela primeira vez a atenção de Tomás para o nome e a obra de Aristóteles. Este simples fato marca um lugar a Pedro da Irlanda na história do pensamento humano: ter sido, provavelmente, o instrumento do encontro inicial entre Santo Tomás de Aquino e  Aristóteles"11.

"Os progressos do moço em Nápoles", prossegue João Ameal, "são rápidos e sensíveis. Afirma Guilherme de Tocco, de acordo com o depoimento de seus contemporâneos, que nas aulas o seu gênio começou a brilhar por tal forma, e sua inteligência a revelar-se tão perspicaz, que repetia aos outros estudantes as lições dos mestres, porém de maneira mais elevada, mais clara e mais profunda do que como as tinha ouvido"12.


Beato Jordão da Saxônia

Foi durante sua estadia na Universidade de Nápoles, enquanto estudava o Trivium e o Quadrivium, que Tomás ficou conhecendo os padres dominicanos, sacerdotes pertencentes a uma ordem recém fundada na Igreja por São Domingos, cuja regra obrigava seus membros de modo especial à oração, ao estudo e ao ensino. Tratando da vida do bem aventurado Jordão da Saxônia, um dos primeiros dominicanos, seu biógrafo contemporâneo, Gerardo de Frachet, diz que certa vez um homem do povo aproximou-se de Frei Jordão e lhe indagou sobre qual fosse a regra que ele professava; ao que mestre Jordão respondeu: "A regra dos frades pregadores é esta: viver honestamente, estudar e ensinar; as mesmas coisas que pediu Davi ao Senhor quando disse: `Ensinai-me, Senhor, a bondade, a ciência e a disciplina'"13.

Uma ordem assim organizada, e que vivia ainda no fervor de seus primeiros anos de fundação, pois tinha sido fundada apenas vinte anos antes, deveria certamente exercer notável atração sobre um jovem com as qualidades de Tomás de Aquino. Assim como ele, os dominicanos eram também novos em Nápoles; seu convento tinha sido fundado nove anos antes da chegada de Tomás, e passou a contar com as frequentes visitas do estudante.

Provavelmente após os sete anos de estudos exigidos pelos ciclos do Trivium e do Quadrivium14, Tomás ingressou, por volta de seus 20 anos de idade, na Ordem dos Dominicanos. Por motivos de segurança, pois sua família ainda abrigava o desejo de vê-lo abade de Monte Cassino, Frei João Teutônico, mestre geral da Ordem Dominicana, enviou Tomás para Paris e logo em seguida para Colônia, no Império Germânico, onde, "sob a direção de frei Alberto (Santo Alberto Magno), mestre de Teologia da mesma ordem, floresceu um Studium Generale"15.


Santo Alberto Magno

Ali, Santo Alberto Magno vinha empreendendo um trabalho de interpretação e assimilação de toda a obra de Aristóteles. "Nossa intenção", – escreveu ele no início do seu Comentário à Física de Aristóteles, – "é tornar compreensível aos latinos todas as partes da obra de Aristóteles"16. "O encontro de Tomás de Aquino com Alberto Magno representa um fato de extraordinária  Transcendência na história do pensamento", continua João Ameal.

"Pode-se dizer que os dois foram colaboradores necessários à edificação do mais vasto e consistente sistema filosófico de todos as épocas. Santo Alberto recebeu com justiça o título de "Doutor Universal", pela sua desmedida pirâmide de conhecimento; colocando diante de seu discípulo uma variedade opulentíssima de temas. Se a visão de Tomás não tivesse sido assim de início estimulada pelo mestre e alargada nos mais diferentes sentidos, talvez o monumento tomista não alcançasse a majestade soberana a que se elevou"17. Desta época é novamente o testemunho de Guilherme de Tocco:

Frei Alberto, mestre em Teologia, era tido também como singular em todas as ciências. Tendo ali chegado o jovem Tomás, ouvindo-o ensinar coisas admiráveis e profundas em todas as ciências, muito alegrou-se por ter encontrado aquilo que buscava e de onde pudesse beber ávidamente aquilo de que tinha sede. Começou de modo admirável a falar pouco e permanecer no silêncio; tornou-se assíduo no estudo e devoto na oração, recolhendo interiormente na memória aquilo que posteriormente derramaria em seus ensinamentos.
Como se escondesse, porém, sob o véu de uma admirável simplicidade, seus irmãos começaram a chamá-lo 'boi mudo'. Desconhecendo, assim, a opinião humana a perfeição de seu aproveitamento, mestre Alberto deu início às suas preleções sobre o Livro dos Nomes Divinos do Bem-aventurado Dionísio, às quais o jovem passou a dar ainda maior atenção.
Certo estudante, desconhecendo quanta fosse a virtude da inteligência que nele se escondia, ofereceu-se, movido por compaixão, para repetir-lhe as lições, ao que Tomás, muito humilde, aceitou com gratidão.
Depois, porém, tendo o jovem iniciado uma repetição, como não conseguisse terminá-la,
frei Tomás, como que aceitando uma permissão divina para falar, repetiu toda a lição com distinção, complementando-a ainda com muita coisa que o mestre não havia ensinado.
Pesando-lhe na consciência ocultar o que havia ouvido, seu colega indicou a mestre Alberto haver descoberto no jovem Tomás um inesperado tesouro de sabedoria. Encarregou então o mestre a Tomás de responder, no dia seguinte, diante de todos, a uma questão muitíssimo difícil, o qual, se pela humildade não o quisesse fazer, o fez, todavia, pela obediência.
No dia seguinte, após ter-se dado à oração e recomendado humildemente a Deus, antepondo à questão do mestre uma certa distinção, Tomás pôde respondê-la a contento. Não satisfeito, mestre Alberto acrescentou-lhe mais quatro argumentos tão difíceis de serem respondidos que pensou com isto ter colocado a conclusão da questão. Frei Tomás, porém, a elas conseguiu responder tão brilhantemente que levou mestre Alberto a dizer: `Nós chamamos a este jovem de 'boi mudo', mas ele ainda dará tamanho mugido na doutrina que soará em todo o mundo!'.
Tomás, porém, que tinha alicerçado os fundamentos de seu coração na humildade, não se ensoberbeceu pelo testemunho de um tão grande mestre, nem por tão honrado ato escolar. Nem alterou seu costumeiro exemplo de simplicidade, observando sempre o mesmo modo de vida com que tinha iniciado, embora o mestre passasse a confiar-lhe todos os atos escolares mais difíceis por vê-lo muito mais adiantado do que os demais colegas"18

Foi em Colônia que Tomás de Aquino começou a ensinar sob a direção de Santo Alberto, e foi ainda nesta cidade que foi ordenado sacerdote pelo arcebispo de Colônia, Conrado de Hochstaden. Provavelmente foi também em Colônia que escreveu o De Ente et Essentia e que principiou a comentar os Livros das Sentenças de Pedro Lombardo19.

Em 1252, aos 27 anos, Tomás de Aquino foi transferido para Paris, com o fim de lecionar em sua famosa Universidade (atual Sorbonne), ali permanecendo até 1259, quando devia já contar com 34 anos. Foi nesta sua primeira estada em Paris que escreveu o Comentário aos Livros das Sentenças de Pedro Lombardo e as Quaestiones Disputatae De Veritate20.

Dos 34 aos 44 anos, Santo Tomás de Aquino lecionou em vários centros de estudos da Itália. Durante três anos foi professor em uma escola de Teologia anexa à Cúria Romana e teólogo consultor do Papa21. Desta época datam os principais comentários aos livros de Aristóteles, como o Comentário à Fisica, o Comentário à Metafísica e especialmente o Comentário à Ética. Datam desta época também a impressionante Summa contra Gentiles, que representou para Santo Tomás como que uma preparação para que pudesse escrever depois a monumental Summa Theologiae. É também desta época que provém a concepção e o planejamento da mesma Summa Theologiae, bem como a redação da primeira das três partes em que se divide esta obra22.

Dos 44 aos 47 anos, Tomás de Aquino voltou a lecionar na Universidade de Paris. Neste período escreveu outros comentários a Aristóteles, como o Comentário ao Livro da Interpretação, o Comentário aos Segundos Analíticos, o Comentário ao De Anima e o Comentário à Política, este incompleto e terminado pelo seu discípulo Pedro de Alvernia. Da Summa Theologiae redigiu também a segunda de suas três partes23.

Na Páscoa de 1247, com 47 anos completos, Santo Tomás retornou à Itália, onde lecionou na Universidade de Nápoles durante dois anos.

Durante estes dois anos escreveu o Comentário ao Livro De Causis e a terceira parte da Summa Theologiae, da qual completou as questões referentes a Cristo e a maior parte das referentes aos Sacramentos; preparava-se para escrever talvez aquela que seria a parte mais sublime, em que descreveria o Paraíso, quando, durante a Missa que celebrava na manhã de 6 de dezembro de 1273, recebeu uma Revelação que o proibiu de continuar a escrever e aguardar seu breve trânsito para a vida eterna, o que veio ocorrer a 7 de março do ano seguinte, à idade de 49 anos24.


* * * 

Mencionamos aqui a cronologia apenas de alguns dos livros de Santo Tomás de Aquino; além destes, ele produziu uma infinidade de outros trabalhos. Comentou, além dos já citados de Aristóteles, outros livros deste mesmo filósofo; quase todos os livros das Sagradas Escrituras; o Livro dos Nomes Divinos de Dionísio Areopagita e várias obras de Boécio; escreveu inúmeros trabalhos próprios de Filosofia, dos quais o De Ente et Essentia é um exemplo; várias obras de Teologia, além das duas Summae e dos Comentários aos Livros das Sentenças; pelo menos três livros de Política, além do próprio Comentário à Política de Aristóteles; diversas Quaestiones Disputatae, das quais as principais são as De Veritate, as De Potentia, as De Anima, as De Malo e várias menores, e também as Quaestiones Quodlibetales.


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Notas e referências bibliográficas:
1. Manser, G.M.: La Esencia del Tomismo; Madrid, Consejo Superior de Investigaciones Cientificas Instituto "Luiz Vives" de Filosofia, 1953; pg. 14.
2. Ameal, João: São Tomás de Aquino; Porto, Livraria Tavares Martins, 1956; pg. 10.
3. João Francisco de Barbosa Azevedo de Sande Aires de Campos (Santa Cruz, Coimbra, 23 de fevereiro de 1902 - Lisboa, 23 de setembro de 1982), conhecido pelo pseudônimo literário João Ameal, jornalista, escritor, político, e historiador de grande estatura, com vasta obra publicada e referência sobre Santo Tomás e o tomismo.
4. Mandonnet, P.: in Revue Thomiste, XXII, 1914, pgs. 652- 664, segundo nota de João Ameal à pg. 10 da obra citada na nota 23.
5. Guillelmus de Tocco:"Vita S.Thomae Aquinatis", C.1.
6. Manser, G.M.: o.c.; pgs. 14-5.
7. Nascimento, Carlos A. R.: Santo Tomás de Aquino, o Boi mudo da Sicília; São Paulo, EDUC, 1992; pg. 12.
8. Ameal, João: o.c., pgs. 13-4.
9. Guillelmus de Tocco: Vita Sancti Thomae Aquinatis, C.5.
10. Ameal, João: o.c.; pg. 17.
11. Ibidem, loc. cit..
12. Ibidem, pg. 18.
13. Frachet, Gerardo: Vida de los Frailes Predicadores; in Santo Domingo de Guzman, su vida, su orden, sus escritos; Madrid, BAC, 1947; pg. 622.
14. Manser, G.M.: o.c.; pg. 16.
15. Guillelmus de Tocco: Vita Sancti Thomae Aquinatis, C. 12.
16. Ameal, João: o.c., pg 5l. 
17. Ibidem, pg. 53.
18. Guillelmus de Tocco: Vita Sancti Thomae Aquinatis, C.12.
19. Ameal, João: o.c., pg. 57, pg. 63; Manser, G. M.: o.c., q. 17. Quanto ao De Ente et Essentia, sua data é encontrada em quase todas as tábuas cronológicas das obras de S. Tomás.
20. Manser, G.M.: o.c. pg. 19.
21. Ameal, João: o.c., pg. 85.
22. Manser, G.M., o.c., pg. 20.
23. Ibidem, pg. 22; Pirotta, P. F. Angelus M.: Editoris Praefatio; in Sancti Thomae Aquinatis in Aristotelis Librum De Anima Commentarium; Turim, Marietti, 1948; pg. VII. Spiazzi, P.F. Raymundus: Introductio Editoris; in Sancti Thomae Aquinatis Doctoris Angelici in Libros Politicorum Expositio; Turim, Marietti, 1951; pg. XXVI.
24. Ameal, João: o.c., pg 144.

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Fonte bibliográfica:
ROSA, Antonio Donato. A Educação segundo a Filosofia Perene: orientação para pais e mestres segundo Tomás de Aquino e Hugo de S. Vitor. Cristianismo.Org.Br.
www.ofielcatolico.com.br

O Mandamento da Caridade, por Santo Tomás de Aquino

Santo Tomás de Aquino, por Andrea di Bartolotêmpera sobre madeira (aprox. 1410)


Das Conferências sobre os Dez Mandamentos


1. Introdução

Três coisas são necessárias à salvação do homem, a saber:

● A ciência do que se há de crer;

● A ciência do que se há de desejar;

● E a ciência do que se há de operar.

A primeira nos é apresentada no Credo, por meio do qual nos é ensinada a ciência dos artigos da Fé. A segunda, na oração do Pai-Nosso. A terceira, na Lei.

Agora, a nossa intenção é acerca da ciência do que se há de operar, pelo estudo da qual encontramos quatro leis.


2/1. A Lei da Natureza

A primeira lei é dita lei da natureza, e esta nada mais é do que a luz da inteligência posta em nós por Deus, pela qual conhecemos como devemos agir e o que devemos operar. Esta Luz e esta Lei, Deus a deu ao homem, na criação, mas muitos acreditam dela poderem desculpar-se por ignorância, se não a observarem.

Contra estes diz, porém, o profeta no Salmo 4,6: "Muitos dizem: Quem nos mostrará o bem?", como se ignorassem o que é para se operar. Mas o próprio profeta, no mesmo lugar, responde (v.7): "Sobre nós está assinalada a luz do teu Semblante, ó Senhor". Luz, a saber, do intelecto, pela qual nos é dado a conhecer como devemos agir. De fato, ninguém ignora que aquilo que não quer que seja feito a si, não deve fazer ao outro, e outras tais.


3/2. A Lei da Concupiscência

Posto, porém, que Deus na criação deu ao homem esta lei, – a da natureza, – todavia o demônio semeou sobre esta uma outra lei, a da concupiscência. Com efeito, até quando no primeiro homem a alma foi submissa a Deus, observando os divinos Preceitos, também a carne foi submissa em tudo à alma, ou à razão. Mas depois que o demônio, pela tentação, afastou o homem da observância dos Preceitos divinos, também a carne se tornou desobediente à razão, do que sucedeu que, ainda que o homem queira o bem segundo a razão, todavia é inclinado ao contrário pela concupiscência.

É isto o que diz o Apóstolo aos Romanos, e a nós mesmos: "Mas vejo outra lei nos meus membros que se opõe à lei da minha razão" (Rm 7, 23). Daqui é que frequentemente a lei da concupiscência corrompe a lei da natureza e a ordem da razão, e por isso acrescenta o Apóstolo: "Acorrentando-me à lei do pecado" (ibd.).



4/3. A Lei da Escritura, ou do temor

A lei da natureza, pois, estava destruída pela lei da concupiscência. Fazia-se, portanto, necessário que o homem fosse restituído à obra da virtude e fosse afastado dos vícios. Para isto, foi necessária a lei da Escritura.

Deve-se saber, porém, que o homem é afastado do mal e induzido ao bem por duas coisas, a primeira das quais o temor. De fato, a primeira coisa pela qual alguém maximamente principia a evitar o pecado é a consideração das penas do Inferno e do Juízo final. Por isso é que o Eclesiástico nos diz: "O início da Sabedoria é o temor do Senhor" (Eclo 1,16), e também: "O temor do Senhor expulsa o pecado" (Eclo 1, 27), pois, ainda que aquele que por temor não peca não seja justo, todavia daqui principia a justificação.

É deste modo que o homem é afastado do Mal e induzido ao Bem pela lei de Moisés, a qual punia os transgressores com a morte: "Quem transgride a Lei de Moisés é condenado à morte, sem piedade, com base em duas ou três testemunhas" (Hb 10, 28).


5/4. A Lei Evangélica, ou do Amor

O modo do temor, porém, é insuficiente, e a lei que foi dada por Moisés desta maneira, afastando do mal pelo temor, também foi insuficiente. De fato, ainda que obrigasse a mão, não obrigava a alma. Por isso, há um outro modo de afastar do mal e induzir ao bem, a saber, o modo do amor, e deste modo foi dada a Lei de Cristo, a lei Evangélica, que é Lei de Amor.


6. A Lei do Amor torna livre

Deve-se considerar, entretanto, que entre a Lei do temor e a Lei do Amor são encontradas três diferenças. A primeira consiste em que a Lei do temor faz de seus observantes servos, enquanto que a Lei do Amor os faz livres. Pois quem opera somente pelo temor opera pelo modo de servo; quem, porém, o faz por Amor, o faz pelo modo do livre, ou do filho. De onde diz o Apóstolo: "Onde está o Espírito do SENHOR, lá está a liberdade" (2Cor 3, 17) porque, a saber, estes por amor agem como filhos.


7/2. A Lei do Amor introduz nos Bens Celestes

A segunda diferença está em que os observadores da primeira Lei eram introduzidos nos bens temporais, conforme diz Isaías: "Se quiserdes, e me ouvirdes, comereis dos bens da terra" (Is 1, 19).
Mas os observadores da segunda Lei são introduzidos nos Bens Celestes: "Se queres entrar na Vida, observa os Mandamentos" (Mt 19, 17). E também: "Fazei penitência" (Mt 3, 2).


8/3. A Lei do Amor é leve

A terceira diferença é que a primeira é pesada: "Por que quereis impor um jugo sobre nós que nem nós e nem nossos pais puderam suportar?" (At 15, 10) A segunda, porém, é leve: "O meu jugo é suave, e o meu peso é leve" (Mt 11, 30). E também: "Não recebestes um espírito de servidão para recairdes no temor, mas recebestes o espírito de adoção de filhos" (Rm 8, 15).


9. Conclusão: simplicidade e retidão da Lei de Cristo

Assim, portanto, como já foi dito, encontram-se quatro Leis, a primeira sendo a Lei da Natureza, que Deus infundiu no homem na criação, a segunda a lei da Concupiscência, a terceira a lei da Escritura, a quarta a Lei do Amor/caridade e da Graça, que é a Lei de Cristo.

Como, porém, é evidente que nem todos podem ser versados na ciência, foi-nos dada por Cristo uma Lei breve, para que por todos pudesse ser sabida, e ninguém por ignorância pudesse escusar-se de sua observância, e esta é a lei do Amor divino. Como diz o Apóstolo: "Fará o Senhor uma Palavra abreviada sobre a Terra" (Rm 9, 28).

Deve-se saber, ademais, que esta Lei deve ser a regra de todos os atos humanos. Com efeito, assim como vemos nas coisas feitas pela arte humana, em que cada obra é dita boa e correta quando segue a regra da arte, assim também qualquer obra humana é reta e virtuosa quando concorda com a regra do Amor divino. Quando, porém, discorda desta regra, não é boa, nem reta, ou perfeita. Portanto, para que os atos humanos se tornem bons, é necessário que concordem com a regra do amor divino.


10. Os efeitos da Lei do Amor: o Amor causa a Vida espiritual

Deve-se saber, também, que esta Lei, a do Amor divino, produz quatro coisas no homem que são imensamente desejáveis, a primeira das quais é causar no mesmo a Vida espiritual.

É, de fato, manifesto que o amado está naturalmente no amante, e por isto, quem a Deus ama, possui Deus em si: "Quem permanece na caridade em Deus permanece, e Deus nele" (1Jo 4, 16).

A natureza do amor é também tal que transforma o amante no amado; de onde que se amamos o que é vil e caduco, vis e instáveis nos tornamos: "Fizeram-se abomináveis assim como o que amaram" (Os 9, 10). Se, porém, a Deus amarmos, divinos nos tornaremos, porque, como está escrito: "Aquele que se une ao Senhor, constitui com Ele um só Espírito" (1Cor 6, 17).

Neste sentido é que Santo Agostinho diz que assim como a alma é a vida do corpo, assim Deus é a Vida da alma, e isto é manifesto. Porquanto dizemos o corpo viver pela alma, quando tem as operações próprias da vida, e quando opera e se move. Apartando- se, porém, a alma, nem o corpo opera, nem se move.

Assim também a alma opera virtuosa e perfeitamente quando opera pelo Amor/caridade, pelo qual Deus habita nela. Sem a caridade, porém, não opera: "Quem não ama, permanece na morte" (1Jo 3, 14)

Deve-se considerar, também, que se alguém tiver todos os Dons do Espírito Santo sem a caridade, não tem a Vida. Seja, de fato, a graça de falar em línguas, seja o dom da fé, ou seja qualquer outro, sem a caridade não concedem a Vida.

Com efeito, se o corpo dos mortos é vestido de ouro e de pedras preciosas, não obstante isto, morto permanece. Causar a vida espiritual é, portanto, o primeiro dos efeitos da caridade.


11/2. O Amor causa a observância dos Mandamentos

O segundo efeito da caridade é a observância dos Mandamentos divinos. Diz São Gregório: "Nunca o Amor de Deus é ocioso".

Porquanto, se existe, opera grandes coisas; se, porém, se recusa a operar, amor não é. De onde que um sinal manifesto da caridade é a prontidão na execução dos Preceitos divinos. Vemos, de fato, os que amam operar por causa do Amado coisas grandes e difíceis. Diz também o Evangelho de João: "Se alguém me ama, observará os meus Mandamentos" (Jo 14, 23).

Mas quem observa o Mandamento e a Lei do Amor divino cumpre toda a Lei. Pois há dois modos de Mandamentos divinos; alguns são afirmativos, e estes a Caridade cumpre porque a plenitude da Lei que consiste nos mandamentos é o Amor pelo qual os mandamentos são observados. Já outros são proibitórios, e estes também a caridade cumpre, porque "não age maldosamente" (1Cor 13, 4), como diz o Apóstolo.


12/3. O Amor é Refúgio contra as adversidades

A terceira coisa que faz a Caridade é ser refúgio contra as adversidades. Ao que tem Caridade, nenhuma adversidade causa dano, antes, se converte em coisa útil: "Todas as coisas cooperam para o bem dos que amam a Deus" (Rm 8, 28). As coisas adversas e difíceis parecem suaves para os que amam, como entre nós o vemos manifestamente.


13/4. O Amor conduz à eterna Bem-aventurança

O quarto efeito da Caridade é o de conduzir à felicidade. Somente aos que tiverem Caridade a Felicidade eterna é prometida, pois todas as coisas sem a Caridade são insuficientes: "Desde já me está reservada a Coroa de justiça, que me dará o SENHOR, justo juiz, naquele dia. E não somente a mim, mas a todos os que tiverem esperado com amor a sua vinda" (2Tim 4, 8).

E deve-se saber que somente segundo a diferença da Caridade será a diferença da Bem-aventurança, e não segundo nenhuma outra virtude. Muitos, na verdade, fizeram maiores jejuns do que os Apóstolos, mas estes, na bem-aventurança superam todos os outros por causa da excelência da Caridade. Eles, com efeito, foram as primícias dos que têm o Espírito, com diz o Apóstolo (cf. Rm 8, 23). De onde que a diferença da bem-aventurança provém da diferença da Caridade, e assim são patentes as quatro coisas que em nós faz a caridade.


14. Outros efeitos do Amor: o Amor produz o perdão dos pecados

Além destas, porém, a caridade faz outras coisas que não se devem deixar passar.

Primeiro, causa o perdão dos pecados, algo que já vemos manifestamente acontecer entre nós. Porquanto, se alguém ofender algum homem e posteriormente vier a amá-lo entranhadamente, o ofendido, por causa do amor com que é amado, perdoará a ofensa. Assim também Deus perdoa os pecados dos que o amam: "A caridade encobre uma multidão de pecados" (1Pe 4, 8).

E diz bem o Apóstolo que os encobre, porque para Deus não parece que devam ser punidos. Mas, posto que São Pedro diga que encobre uma multidão, todavia Salomão diz que "a caridade encobre todos os delitos" (Pv 10, 12), o que o exemplo da Madalena maximamente manifesta: "São-lhe perdoados muitos pecados", e a causa é mostrada: "já que muito amou" (Lc 7, 47).

Mas, talvez, alguém dirá: "Então a caridade basta para apagar os pecados, e não é necessário o arrependimento?". Deve-se considerar, porém, que ninguém verdadeiramente ama que não se arrependa verdadeiramente. De fato, é manifesto que quanto mais amamos a alguém, tanto mais nos afligimos se a ele ofendemos, e isto é um efeito da caridade.


15/2. O Amor produz a Iluminação do coração

A Caridade causa também a iluminação do coração. Com efeito, assim diz o Livro de Jó: "Estamos todos envolvidos em trevas" (Jó 37, 19). Pois frequentemente não sabemos como agir, ou desejar. A Caridade, porém, ensina tudo o que é necessário à salvação. Por isto está dito: "Sua unção vos ensinará de tudo" (1Jo 2, 27).

Isto é porque onde está a Caridade, lá está o Espírito Santo que a tudo conhece, o qual nos conduz no caminho correto, assim como está escrito no Salmo 142,10. E por isso diz também o Eclesiástico: "Vós, que temeis a Deus, amai-O, e se iluminarão os vossos corações" (Eclo 2, 10), a saber, para o conhecimento do que é necessário à salvação.


16/3. O Amor realiza a perfeita Alegria

A Caridade também realiza no homem a perfeita Alegria. Na verdade, ninguém tem verdadeira Alegria a não ser existindo na Caridade. Quem quer que deseje algo não está contente, nem se alegra, e nem tem repouso enquanto não o conseguir. E nas coisas temporais sucede que o que se não se tem é apetecido, e o que se tem é desprezado e gera o tédio. Mas não é assim nas coisas espirituais; antes, ao contrário, quem a Deus ama, a Deus possui, e por isso a alma de quem O ama e O deseja n'Ele repousa: "Quem", de fato, "permanece na Caridade, em Deus permanece, e Deus nele", como está dito na Primeira Epístola de João (4, 16).


17/4. O Amor produz a perfeita Paz

Igualmente, a Caridade produz a perfeita paz. Pois acontece nas coisas temporais que sejam desejadas com frequência, mas obtidas as mesmas, ainda a alma do que as deseja não repousa, antes, ao contrário, obtida uma, outra apetece: "O coração do ímpio é como um mar revolto, que não pode repousar" (Is 57, 20). E também, no mesmo lugar: "Não há paz para o ímpio, diz o Senhor".

Mas não acontece assim na Caridade para com Deus. Quem, de fato, ama a Deus, tem a Paz perfeita: "Muita paz aos que amam a Tua lei, e não há tropeço para eles" (Sl 118, 165).

E isto porque somente Deus é capaz de satisfazer o nosso desejo, porquanto Deus é maior do que o nosso coração, como diz o Apóstolo. Por isso diz Santo Agostinho, no primeiro livro das Confissões: "Fizeste-nos, ó SENHOR, para Ti, e o nosso coração está inquieto enquanto não repousa em Ti". E também: "O qual preenche de bens o teu desejo" (Sl 102, 5).

A caridade também torna o homem de grande dignidade. Com efeito, todas as criaturas servem à própria Majestade divina, e por ela foram feitas, assim como as coisas artificiais servem ao artífice. Mas a Caridade faz do servo um livre e um amigo. De onde diz o Senhor: "Já não vos chamarei de servos, mas de amigos" (Jo 15, 15).

Mas porventura Paulo não é servo? E os outros Apóstolos não escreviam de si serem servos? Quanto a isto deve-se saber que há duas servidões. A primeira é a do temor, e esta é penosa e não meritória. Se, de fato, alguém se abstém do pecado somente pelo temor da pena, não merece por isto. Ainda é servo.

A segunda servidão é a do Amor. Se, na verdade, alguém opera não pelo temor da justiça, mas pelo Amor divino, não opera como servo, mas como livre, porque voluntariamente, e é por isto que Cristo diz: "Já não vos chamarei mais de servos". E por que? A isto responde o Apóstolo: "Não recebestes o espírito de servidão para recairdes no temor, mas recebestes o espírito de adoção de filhos" (Rm 8, 15). "Não há, de fato, temor na caridade", como diz 1Jo 4, 18.

O temor tem, certamente, tormento, mas a caridade deleitação.


18. O Amor dignifica o homem

A caridade igualmente torna não somente livres, mas também filhos, para que, a saber, "sejamos chamados filhos de Deus e de fato o sejamos" (1Jo 3, 1).

Com efeito, o estranho se torna filho adotivo quando adquire para si o direito na herança de Deus, que é a vida eterna. Pois, como diz Romanos: "O próprio Espírito dá testemunho ao nosso espírito que somos filhos de Deus. Se, porém, filhos, também herdeiros: herdeiros de Deus e co-herdeiros de Cristo" (Rm 8, 16-17). E também: "Eis que são contados entre os filhos de Deus" (Sab 5, 5).


19. O Amor de Caridade só pode ser alcançado pela Graça

Do que já foi dito, fica patente a utilidade da Caridade. Pois que, portanto, seja tão útil, deve-se trabalhar diligentemente para adquiri-la e retê-la. Deve-se saber, porém, que ninguém pode por si mesmo possuir a caridade. Antes, ao contrário, é Dom inteiramente de Deus. De onde diz S. João: "Não fomos nós quem amamos a Deus, mas Ele Quem nos amou primeiro" (Jo 4, 19); certamente não é por causa de nós o amarmos primeiro que Ele nos ama, mas o próprio fato de o amarmos é causado em nós pelo seu Amor.

Deve-se considerar, também, que ainda que todos os dons sejam do Pai das Luzes, todavia este Dom, a saber, o da Caridade, supera todos os demais Dons. De fato, todos os outros podem ser possuídos sem a Caridade e o Espírito Santo; com a Caridade, porém, possui-se necessariamente o Espírito Santo: "A Caridade de Deus foi derramada nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado" (Rm 5, 5).

Seja o Dom das línguas, portanto, seja o Dom da ciência ou o da profecia, todos estes podem ser possuídos sem a Graça e o Espírito Santo.


20. Quatro disposições para alcançar de Deus a Graça da Caridade

Mas, ainda que a caridade seja Dom divino, para possuí- la requer-se a disposição de nossa parte. Por isso, deve-se saber que duas coisas são necessárias para adquirir a caridade, e duas para aumentar a caridade já adquirida.


21/1. Primeira Disposição: a escuta da Palavra de Deus

Para adquirir, pois, a Caridade, a primeira coisa é a escuta diligente da Palavra de Deus, o que é suficientemente manifesto pelo que ocorre entre nós. Ouvindo, de fato, coisas boas de alguém, somos acesos em seu amor. Assim também, ouvindo as Palavras de Deus, somos acesos em seu Amor: "A tua Palavra é um fogo ardente, e o teu servo a amou" (Sl 118, 140). E também: "A Palavra de Deus o inflamou" (Sl 104, 19).

Por esta causa, aqueles dois discípulos, ardendo do Amor divino, diziam: "Porventura não ardia em nós o nosso coração, enquanto nos falava Ele pelo caminho e nos explicava as Escrituras?" (Lc 24, 32).

De onde que também no Livro Atos (10, 44) se lê que enquanto Pedro pregava, o Espírito Santo caiu nos ouvintes da Palavra divina. E o mesmo frequentemente acontece nas pregações, isto é, que os que se aproximam com o coração duro, por causa da palavra da pregação, são acesos ao Amor divino.


22/2. Segunda Disposição: a Meditação

Para adquirir a Caridade, a segunda coisa é a contínua consideração dos Bens recebidos: "Aqueceu-se o meu coração dentro de mim" (Sl 38, 4). Se, portanto, queres conseguir o Amor divino, meditarás os Bens recebidos de Deus. Demasiadamente duro seria, na verdade, quem considerando os benefícios divinos que alcançou, os perigos dos quais escapou, e a bem-aventurança que lhe é prometida por Deus, que não se acendesse ao Amor divino. De onde diz Santo Agostinho da dureza da alma do homem que, posto que não queira retribuir o amor, não queira pelo menos agradecer.

De modo geral, assim como os pensamentos maus destroem a Caridade, assim os bons a adquirem, a alimentam e a conservam, de onde que nos é ordenado: "Retirai os vossos maus pensamentos dos meus olhos" (Is 1, 16). E também: "Os pensamentos perversos separam de Deus" (Sb 1, 3).


23./3 Terceira Disposição: afastar o coração das coisas da Terra

Há também duas coisas que aumentam a Caridade possuída; a primeira é afastar o coração do que é terreno. O coração, de fato, não pode ser trazido perfeitamente a coisas diversas, de onde que ninguém é capaz de amar a Deus e ao mundo. E por isso, quanto mais nos afastarmos do amor do que é terreno, tanto mais nos firmaremos no amor Divino. De onde Santo Agostinho diz no Livro 83 de suas Questões: "A esperança de conseguir ou reter o que é temporal é veneno da Caridade. O seu alimento é a diminuição da cobiça; sua perfeição, a nenhuma cobiça, porque a raiz de todos os males é a cobiça”.


Quem quer que, portanto, queira alimentar a Caridade, insista em diminuir a cobiça. A cobiça é o amor de conseguir ou obter o que é temporal, e o início de sua diminuição é o temor de Deus, o qual não pode somente ser temido, sem amor. É por esta causa que se ordenaram as religiões, nas quais e pelas quais a alma é trazida do que é mundano e corruptível ao que é Divino, conforme se encontra escrito no Segundo de Macabeus, onde se lê: "Refulgiu o Sol, que antes estava entre nuvens" (2Mac 1, 22).

O Sol, isto é, o intelecto humano, está entre nuvens quando entregue às coisas terrenas. Refulgirá, porém, quando for afastado e removido do amor do que é terreno. Resplandecerá, então, e nele crescerá o Amor divino.


24/4. Quarta Disposição: a firme paciência na adversidade

A segunda coisa que aumenta a Caridade é a firme paciência na adversidade. É manifesto, de fato, que quando sustentamos dificuldades por aqu'Ele a quem amamos, o próprio Amor não é destruído; antes, ao contrário, ele cresce: "As muitas águas", isto é, as muitas tribulações, "não puderam extinguir a Caridade" (Ct 8, 7).

É assim que os homens santos que sustentam adversidades por Deus mais se firmam em seu Amor, assim como o artífice mais amará aquela sua obra na qual mais trabalhou. Daí também vem que os fiéis, quanto maiores aflições por Deus sustentam, tanto mais se elevam no seu Amor: "Multiplicaram-se as águas", isto é, as tribulações, "e elevaram a arca ao alto" (Gn 7, 17) isto é, a Igreja, ou a alma do homem justo.
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