** Conteúdo extraído de nossa Formação em Teologia Católica Clássica
I — Onde está escrito na Bíblia que a "única regra de fé e prática" dos cristãos é a própria Bíblia?
A afirmação de que "a única regra de fé e prática dos cristãos é a Bíblia" tem sua origem na chamada "Reforma" Protestante do século XVI. Essa afirmação é baseada no princípio "Sola Scriptura" ('Somente a Escritura'), segundo o qual "a Bíblia tem absoluta primazia, sendo ela a única regra de Fé e Prática que todo ser humano deve seguir".
A fonte principal dessa afirmação são os assim chamados "reformadores" protestantes, especialmente Martinho Lutero (1483-1546), que iniciou esse trágico movimento em 1517, e João Calvino (1509-1564), que sistematizou muitos dos princípios ditos "reformados".
O Sola Scriptura é identificado como um dos princípios fundamentais desse movimento religioso e significa que "a Bíblia e a Bíblia só" deveria ser a única regra em questões de doutrina. É um dos cinco pontos fundamentais do pensamento protestante, encabeçando a lista dos "Cinco Solas" protestantes, que são estes:
1. Sola Scriptura (Somente a Escritura);
2. Sola Gratia (Somente a Graça);
3. Sola Fide (Somente a Fé);
4. Solus Christus (Somente Cristo);
5. Soli Deo Gloria (Glória Somente a Deus).
— Enunciado o problema, veremos agora como esta Questão 1 é bastante simples. Onde está escrito na Bíblia que a "única regra de fé e prática" do cristão é a própria Bíblia? Resposta: Em lugar algum. Na verdade, o que a Bíblia afirma é, literalmente, o exato oposto. Vejamos:
1. Em João 5, 39s, o próprio Jesus Cristo declara:
“Examinais as Escrituras porque julgais ter nelas a vida eterna; e são elas que dão testemunho de Mim. E vós não quereis vir a Mim para terdes a vida.”
Nosso Senhor afirma, claramente, que não basta ler as sagradas Escrituras, ou melhor, que não é possível chegar a Ele somente pelo exame da Bíblia. Assim acreditavam os fariseus legalistas e os doutores da Lei hipócritas daquele tempo, os quais Ele condena. De fato, esses homens que o Cristo reprova nos Evangelhos eram estudiosos dedicados e intérpretes respeitados da Lei Mosaica (a Torá) no Judaísmo do Segundo Templo. Eram escribas e/ou fariseus com profundo conhecimento das Escrituras, frequentemente atuando como professores e juízes.
Estamos falando aqui da máxima autoridade em questões legais e rituais, mas, nos Evangelhos, eles são frequentemente retratados em confronto com o Senhor Jesus, criticados por priorizarem a literalidade do texto em vez de buscarem o espírito da Lei. Exemplos dessas interações aparecem em Mt 22,35, Mc 12,28 e Lc 5,17.
Eram grandes conhecedores do Texto sacro, sabiam citar de cor os seus trechos, que repetiam a todo instante. Mas não podiam se aproximar do Senhor por essa via. "Examinais as Escrituras (...) mas não quereis vir a Mim". Vemos, então, que outra coisa é necessária para se achegar ao Senhor, Salvador e Fonte da Vida. Que coisa seria esta?
2. Em 1Timóteo 3, 15, o Apóstolo São Paulo declara, categoricamente:
“...escrevo-te para que saibas como deves te portar na Casa de Deus, que é a Igreja do Deus Vivo, a Coluna e o Sustentáculo da verdade.”
Estamos usando aqui a tradução clássica do Pe. Matos Soares, por sua fidelidade, precisão e confiabilidade[1]. Outras boas traduções dizem que a Igreja é “a Casa do Deus Vivo, coluna e fundamento da Verdade”, como consta também na versão NVI.
A própria Bíblia não poderia ser mais clara, direta e incisiva na resposta: a coluna, o sustentáculo, o fundamento para a fé e a prática do cristão é a Igreja, não as Escrituras, menos ainda se interpretadas isoladamente!
Sim, a Sagrada Escritura é "inspirada por Deus e é útil para ensinar, para repreender, para corrigir, para educar na justiça a fim de que o homem de Deus seja perfeito e aparelhado para toda boa obra" (cf. 2Tim 3,16), mas dizer que a Escritura "é útil" é muito diferente de dizer que dizer que ela é a única regra, certo?
Ora, no mesmo sentido eu poderia dizer que o sabão é útil para lavar louça, mas isso não significa que este é o único e exclusivo meio para se cumprir essa tarefa: podemos usar vários tipos de detergente para isso, além de vinagre branco, limão, água quente, uma lavadora automática, etc.
Eram grandes conhecedores do Texto sacro, sabiam citar de cor os seus trechos, que repetiam a todo instante. Mas não podiam se aproximar do Senhor por essa via. "Examinais as Escrituras (...) mas não quereis vir a Mim". Vemos, então, que outra coisa é necessária para se achegar ao Senhor, Salvador e Fonte da Vida. Que coisa seria esta?
2. Em 1Timóteo 3, 15, o Apóstolo São Paulo declara, categoricamente:
“...escrevo-te para que saibas como deves te portar na Casa de Deus, que é a Igreja do Deus Vivo, a Coluna e o Sustentáculo da verdade.”
Estamos usando aqui a tradução clássica do Pe. Matos Soares, por sua fidelidade, precisão e confiabilidade[1]. Outras boas traduções dizem que a Igreja é “a Casa do Deus Vivo, coluna e fundamento da Verdade”, como consta também na versão NVI.
A própria Bíblia não poderia ser mais clara, direta e incisiva na resposta: a coluna, o sustentáculo, o fundamento para a fé e a prática do cristão é a Igreja, não as Escrituras, menos ainda se interpretadas isoladamente!
Sim, a Sagrada Escritura é "inspirada por Deus e é útil para ensinar, para repreender, para corrigir, para educar na justiça a fim de que o homem de Deus seja perfeito e aparelhado para toda boa obra" (cf. 2Tim 3,16), mas dizer que a Escritura "é útil" é muito diferente de dizer que dizer que ela é a única regra, certo?
Ora, no mesmo sentido eu poderia dizer que o sabão é útil para lavar louça, mas isso não significa que este é o único e exclusivo meio para se cumprir essa tarefa: podemos usar vários tipos de detergente para isso, além de vinagre branco, limão, água quente, uma lavadora automática, etc.
3. Em 2Pedro 1, 20 vemos que a Escritura não pode ser interpretada de modo particular:
“Saibais primeiramente isto: que nenhuma profecia da Escritura resulta de interpretação particular.”
A versão da NVI traz a seguinte tradução do mesmo versículo: "Acima de tudo, saibam que nenhuma profecia da Escritura provém de interpretação pessoal". Note-se como o Texto Sagrado enfatiza que antes de tudo, em primeiro lugar, devemos saber que as profecias da Bíblia não são de interpretação particular. O original em grego traz τοῦτο πρῶτον γινώσκοντες ὅτι πᾶσα προφητεία γραφῆς ἰδίας ἐπιλύσεως οὐ γίνεται Na transliteração: Touto prōton ginōskontes hoti pasa prophēteia graphēs idias epiluseōs ou ginetai. A palavra πρῶτον ('prōton'), no grego, indica prioridade ou primeira coisa na ordem de importância, sendo traduzida como "primeiramente" ou "em primeiro lugar" no contexto da frase. Se o conteúdo das Sagradas Escrituras não provém de interpretações humanas particulares, é evidente que também o seu exame e compreensão não podem se dar por meio do livre exame, isto é, da interpretação particular de cada um — até porque, como diz o antigo e sábio adágio popular português, "cada cabeça uma sentença"[2].
4. Em 2Tessalonicenses 2, 15, há uma clara exortação que demonstra que, além das Escrituras, devemos observar a Sagrada Tradição da Igreja, isto é, às instruções apostólicas:
"Permanecei constantes, irmãos, e conservai as tradições que aprendestes, por nossas palavras ou por carta nossa."
A versão NVI traz: "Permaneçam firmes e apeguem-se às tradições que foram ensinadas a vocês, quer de viva voz, quer por carta nossa". Guardar a Tradição Apostólica, seja aquela passada por palavras, nas pregações, no ensino constante do Magistério da Igreja, seja pelas Epístolas dos mesmos Apóstolos (isto é, o Novo Testamento da Bíblia). Não basta só a Bíblia, isoladamente: é preciso observar também a instrução da Igreja, e desde sempre foi assim na verdadeira Igreja de Cristo.
5. Se alguém ainda tiver dúvidas quanto à "base bíblica" da importância da Sagrada Tradição para os cristãos, basta conferir 2Tessalonicenses 3, 6, onde a instrução é ainda mais clara:
"Nós vos ordenamos, irmãos, em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, que vos aparteis de todo o irmão que anda desordenadamente, e não segundo a Tradição que de nós recebeu.
Note-se aqui, em primeiro lugar, que se trata de uma definição solene, categórica, isto é, dogmática: "Nós vos ordenamos". Aqui reproduzimos a tradução dos monges de Maredsous, feitas diretamente dos originais em grego koiné, pela sua precisão e literalidade, que é idêntica a da versão NVI, pois o original é este:
Παραγγέλλομεν δὲ ὑμῖν, ἀδελφοί, ἐν ὀνόματι τοῦ κυρίου Ἰησοῦ Χριστοῦ στέλλεσθαι ὑμᾶς ἀπὸ παντὸς ἀδελφοῦ ἀτάκτως περιπατοῦντος καὶ μὴ κατὰ τὴν παρά δοσιν ἣν παρελάβετε παρ᾽ ἡμῶν.
Daí, a palavra que especialmente nos interessa é παρά δοσιν (paradosin — pronuncia-se 'paradossíni'), a forma acusativa de παράδοσις ('parádosis'), que significa "tradição" ou "aquilo que é transmitido/entregue".
Literalmente, παράδοσις significa tradição com sentido de "aquilo que é passado adiante" ou "transmitido", referindo-se aos ensinamentos, costumes e doutrinas. No contexto do Novo Testamento, especialmente nas cartas paulinas, παρά δοσις se refere à Doutrina confiada aos Apóstolos por Cristo, e que foi transmitida por eles à Igreja do mesmo Cristo, tanto oralmente (Tradição) quanto por escrito.
Aí está, em 5 simples pontos, derrubada, destruída, reduzida a pó e enterrada a absurda tese de que alguém pode ser verdadeiro cristão apenas mediante o exame particular da Bíblia, ou de que a Bíblia seria, sozinha, a única regra de fé e prática para se seguir. Demos graças a Deus que nos deu a Igreja, Corpo de Cristo, para a nossa salvação.
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[1] A tradução do Pe. Manuel de Matos e Silva Soares de Almeida foi feita diretamente a partir da Vulgata, a versão latina da Bíblia mais amplamente usada pela Igreja Católica. Ele baseou o seu trabalho principalmente no texto da Vulgata Clementina, confrontando-o com os originais hebraicos e gregos quando necessário, para garantir precisão. Essa tradução, publicada em 1932, reflete um esforço de fidelidade ao texto latino tradicional da Igreja. [2] Provavelmente derivado do latim "Quot homines, tot sententiae" ('tantos homens, tantas opiniões'), atribuído ao dramaturgo romano Terêncio (Públio Terêncio Afro, do séc. III) e que pode ter evoluído até a cultura popular portuguesa.
[1] A tradução do Pe. Manuel de Matos e Silva Soares de Almeida foi feita diretamente a partir da Vulgata, a versão latina da Bíblia mais amplamente usada pela Igreja Católica. Ele baseou o seu trabalho principalmente no texto da Vulgata Clementina, confrontando-o com os originais hebraicos e gregos quando necessário, para garantir precisão. Essa tradução, publicada em 1932, reflete um esforço de fidelidade ao texto latino tradicional da Igreja. [2] Provavelmente derivado do latim "Quot homines, tot sententiae" ('tantos homens, tantas opiniões'), atribuído ao dramaturgo romano Terêncio (Públio Terêncio Afro, do séc. III) e que pode ter evoluído até a cultura popular portuguesa.
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