Um balanço da época pós-conciliar (1985), pelo Cardeal Ratzinger

O texto abaixo é uma análise do então Cardeal Joseph Ratzinger, publicado no livro 'Les principes de la théologie catholique - Esquisse et matériaux' (ed. Tequi, 2005) sobre as principais consequências do concílio Vaticano II para a história da Igreja, quando se havia passado uma década do seu encerramento. O texto, bastante interessante, é também revelador em certos aspectos. Rezamos a Deus para que seja útil aos nossos leitores.

Tradução do francês para O FIEL CATÓLICO por Roberto Leal Ferreira 



Primeira parte

QUANDO RECEBI DIVERSOS pedidos, das partes mais diversas, em 1975, para estabelecer um balanço dos dez anos que se seguiram ao Vaticano II, pensei primeiro nos primeiros dias do Concílio. Convidara-me o cardeal Frings, em 12 de outubro de 1962, portanto, às vésperas da sessão de abertura, a expor diante dos bispos de língua alemã os problemas teológicos que teriam de enfrentar em seu trabalho conciliar. Procurando uma introdução adequada que ressaltasse algo da natureza mesma dos Concílios, topei com um texto de Eusébio de Cesareia, membro do primeiro concílio ecumênico da história da Igreja, o de Niceia, em 325. Ele assim resumia as suas impressões acerca dessas assembleias da Igreja:

« Reuniram-se os mais importantes servidores de Deus de todas as igrejas da Europa, da África e da Ásia inteiras. E uma só Igreja, como dilatada à dimensão do mundo, pela graça de deus, continha sírios, cilicianos, fenícios, árabes e palestinos; também egípcios, tebanos, africanos e mesopotâmios. Havia até um bispo persa. Não faltou a esse coro um cita. O Ponto e a Galácia, a Capadócia e a Ásia, a Frígia e a Panfília haviam enviado homens de escol. Mas vieram também trácios, macedônios, aqueus e epirotas e gente que morava ainda mais longe... Havia até um célebre espanhol entre os participantes dessas assembleias.»

No plano de fundo dessas entusiásticas palavras, reconhecemos a descrição de Pentecostes dada por Lucas nos Atos dos Apóstolos, e isso também ressalta o pensamento que Eusébio vincula à sua exposição: Niceia foi um novo Pentecostes, a verdadeira realização do sinal de Pentecostes; por fim a Igreja fala realmente em todas as línguas, nisso reconhece a fé única e se apresenta como a Igreja do Espírito Santo.

O Concílio é um Pentecostes – era este o pensamento que correspondia ao nosso próprio sentimento na época; não só porque o Papa João o formulara como voto e como prece, mas porque ele exprimia o que havíamos sentido ao chegar à cidade conciliar: encontro com bispos de todos os países, de todas as línguas, muito além do que fosse imaginável para Lucas ou Eusébio, e com isso a experiência vivenciada da catolicidade real, com sua esperança de Pentecostes: este era o auspicioso signo desses primeiros dias do Vaticano II.

Era essa, então, a situação na época. Como introdução à retrospectiva solicitada, ficava descartado um texto tão “triunfalista”. O clima mudou completamente. Topei com outro texto patrístico, escrito cerca de 50 anos mais tarde, que reflete uma mudança de perspectiva muito parecida com a que conhecemos hoje. Seu autor é Gregório de Nazianzo, um dos grandes herdeiros de Niceia e ele mesmo Padre conciliar no Concílio de Constantinopla, de 381, que completou a fórmula de Niceia com a declaração explícita da divindade do Espírito Santo. Nem se haviam encerrado completamente as deliberações, em 381, e o Imperador mandara convidar, pelo funcionário Procópio, o célebre bispo e teólogo Gregório para uma espécie de segunda sessão, marcada para 382, que também aconteceria em Constantinopla. Foi lacônica a resposta de Gregório, uma recusa assim justificada:

«Para dizer a verdade, considero que se deva evitar toda assembleia de bispos, pois nunca vi nenhum Concílio que tivesse final feliz ou pusesse um ponto final nos males.»

Martinho Lutero, que em sua primeira fase exigira apaixonadamente a convocação de um Concílio livre e geral, citou esse texto em seu escrito redigido em 1539, Dos Concílios e das Igrejas, e exprimiu a sua opinião definitiva sobre o valor e as desvantagens dos concílios. Esse recuo do entusiasmo quanto aos concílios tem, em Lutero, suas próprias motivações, que o católico, é claro, não há de compartilhar: Lutero percebera que um concílio da Igreja precisava confirmar a doutrina da Igreja. Não podia, portanto, esperar satisfação da parte dele, já que ele mesmo se colocara em contradição não só com os abusos, mas com a doutrina mesma da Igreja; por isso, ele lutou em favor da supremacia do poder secular, em que apostava suas fichas.

Mas embora não devamos dar importância demais ao juízo negativo de Lutero sobre os concílios, o de um dos Padres que formularam a ortodoxia da Igreja nos concílios do século IV conserva o seu peso. Pode-se, é claro, objetar que Gregório, o Teólogo, por melhor teólogo que fosse, era, no plano humano, um hipocondríaco, uma natureza supersensível de poeta. Mas isso dá um peso ainda maior ao fato de que uma das grandes figuras do século dos grandes concílios, eminente até no plano humano, Basílio, amigo de Gregório, formula um juízo objetivamente ainda mais forte. Fala de «alarido indistinto e confuso» no desenrolar-se da discussão conciliar, de um «clamor ininterrupto que enchia toda a igreja ».

Graças a uma espécie de visão macroscópica da história que hoje temos dos acontecimentos daquela época, somos obrigados, porém, a contradizer a opinião dos dois bispos: esses grandes concílios dos séculos IV e V se tornaram faróis da Igreja, que mostram o caminho que leva ao coração da Sagrada Escritura e, pela marca que deixaram de sua interpretação, ressaltam claramente a identidade da fé ao longo do tempo. Mas, se o juízo formulado pela história foi globalmente diferente, como a distância só nos faz ver como durável o que é grande, e como grande o que subsistiu, é claro que os contemporâneos imediatos estiveram continuamente expostos às mesmas experiências que as narradas por esses testemunhos do século das grandes decisões fundamentais. Ante a visão macroscópica, há, por assim dizer, a visão microscópica, aquela que olha de perto; e, olhando de perto, não há como negar que quase todos os concílios tiveram inicialmente como efeito abalar o equilíbrio, agindo como fatores de crise.

O concílio de Niceia, que levara a bom termo a formulação da filiação divina de Jesus, foi seguido de uma guerra de desgaste que ocasionou a primeira grande ruptura da Igreja, o arianismo, depois de ter dilacerado profundamente a Igreja durante décadas.

Não foi diferente depois do concílio de Calcedônia, onde fora definido, ao mesmo tempo que a verdadeira divindade de Cristo, sua verdadeira humanidade. A chaga que então se formou ainda não cicatrizou, até hoje: os fiéis herdeiros do bispo Cirilo de Alexandria sentiram-se traídos por fórmulas que se opunham à sua tradição, piedosamente conservada; como cristãos monofisitas, constituem ainda hoje, no Oriente, uma minoria considerável, que, pelo simples fato de existir, nos faz sentir ainda algo da aspereza das controvérsias de então.

Ao aproximarmo-nos de nossa época, vemos surgir a lembrança do Vaticano I, cujos prolongamentos levaram ao fim de muitas faculdades de teologia católicas na Alemanha; foram necessárias décadas para que as feridas cicatrizassem.

Assim, a evolução crítica consecutiva ao Vaticano II situa-se numa longa história; ela não pôde suscitar realmente o acontecimento senão porque o entusiasmo do início camuflara as experiências do passado; e talvez também porque se acreditava ter feito tudo de um jeito diferente e melhor: um concílio que não dogmatizava e não excluía ninguém parecia não chocar a ninguém, repugnar a ninguém, mas só atrair a todos. Na verdade, nele aconteceu o mesmo que nas outras assembleias da Igreja que o precederam; já ninguém pode contestar seriamente as manifestações de crise a que levou.

Restam, é claro, resultados claramente positivos que não temos o direito de minimizar. Para nos limitarmos aos resultados teológicos mais importantes, o Concílio reinseriu no conjunto da Igreja uma doutrina do primado, que ainda permanecia perigosamente isolado; reintegrou no mistério do corpo de Cristo uma concepção da hierarquia também ela isolada demais. Vinculou ao grande conjunto da fé uma mariologia isolada, devolveu à palavra bíblica a plenitude de sua nobreza. Tornou a liturgia de novo acessível. E, com tudo isso, deu também um corajoso passo no sentido da unidade dos cristãos.

É possível que, mais tarde, num olhar macroscópico do período do Vaticano II, só os resultados venham a contar e que hoje mesmo haja homens que, por assim dizer, já vivem na macro-perspectiva e julguem a partir dela.

Mas, para o contemporâneo que tem responsabilidades imediatas, o que talvez um dia, do ponto de vista macroscópico, venha a ser a única coisa marcante pode muito bem, hoje, não ser a única realidade. Ele está exposto, no dia-a-dia, aos fatos mínimos, e deve lutar para tomar as decisões certas.

Mas para uma visão assim próxima, há fatores negativos incontestáveis, gravíssimos e, em boa medida, inquietantes.

Assim, (para só indicar, uma vez mais, só alguns pontos) o fato de que as nossas igrejas, os nossos seminários, os nossos claustros venham esvaziando-se cada vez mais nestes últimos dez anos pode parecer evidente a todos, pelas estatísticas, se não tiver sido observado pessoalmente. Ou então, o fato de que o clima na Igreja se tenha tornado não mais simplesmente glacial, mas também rancoroso e agressivo, é algo que não precisa de provas complicadas: que de toda parte as divisões dilacerem a comunidade é algo que pertence à nossa experiência quotidiana, algo que ameaça obscurecer a alegria de ser cristão. Quem diz este tipo de coisa é logo taxado de pessimista e, assim, excluído do diálogo. Mas se trata aqui mui simplesmente de fatos empíricos, e ver-se na necessidade de negá-los já denota não mais um simples pessimismo, mas um secreto desespero. Não! Ver os fatos não é pessimismo, mas objetividade; só depois vem a questão do significado de tais fatos, de sua origem e da maneira de abordá-los. Assim, para dar sequência a estas considerações, duas questões se põem: a das razões dessa evolução e a da verdadeira resposta a dar aos problemas.

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Fonte:
'Bilan de l'époque post-conciliaire (I)', do site Benoit et moi disp. em:
http://benoit-et-moi.fr/2018/benot-xvi/bilan-de-lepoque-post-conciliaire-i.html
Acesso 1/2/2017

www.ofielcatolico.com.br

2 comentários:

  1. O concílio Vaticano II abriu as portas da Santa Igreja para duas coisas: os rebeldes hereges pentecostais da Renovação Carismática e para os apóstatas da Teologia de Libertação.

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    1. A paz de Jesus Cristo.

      Exato, Junior Gomes. Essas duas coisas têm prejudicado e muito a Santa Igreja, a primeira, por adotar padrões protestantes, contrários a Tradição e Magistério da Santa Igreja, e a segunda por querer impor a ideologia marxista dentro da Igreja Católica, desvirtuando os ensinamentos de Jesus que veio confirmar a Palavra de Deus e trazer a todos que se converterem a Salvação, o Amor do Pai.

      Ou seja, desde o CV II a dúvida, o dúbio, a discórdia, se espalhou no povo de Deus.

      Mas, seguimos lutando contra as heresias, os desvirtuamentos do Evangelho, incluindo essa ausência de Santas Missas por causa do temor ao coronavírus.

      Salve Maria!

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