Fases da conversão: a Via da Purificação e a Via da Iluminação


A CONVERSÃO, no cristianismo, é um processo que se dá com base principalmente na vontade. Nesse processo, o elemento mais importante não é o intelecto, e menos ainda o fator emocional, por seu caráter efêmero, fugaz, inconstante. Atualmente, entretanto, florescem movimentos religiosos que valorizam o sentimentalismo, criando e alimentando nos fiéis a ideia de que o “sentir-se bem” deve servir como principal parâmetro para decidir se aquele caminho religioso é autêntico ou não.

    "Aqui deve estar Deus, porque aqui eu me sinto bem", é o pensamento comum dos frequentadores de certos grupos religiosos. Acham, por exemplo, que a oração ideal é aquela em que o sujeito fica emocionado, chora, sente um ardor no peito... O culto é excessivamente animado, muitas vezes com batucadas, guitarras distorcidas e bateria alta, aplausos constantes e até danças coreografadas. Tudo isso cria um estado de euforia e empolgação, mas... Trata-se de uma alegria passageira. E a pessoa fica condicionada a querer sempre mais. Logo começa a pensar que, numa celebração em que não aconteça todo aquele ardor festivo, Deus não está presente, ou não está tão "fortemente" presente. Será?

    Grandes Santos e Doutores da Igreja, como Tomás de Aquino, João da Cruz e Catarina de Sena, entenderam que a construção da verdadeira alma cristã passa por etapas distintas, dentre as quais a Via da Purificação e a Via da Iluminação.


A Via da Purificação

O primeira etapa da Via da Purificação ocorre quando a alma encontra Deus: num primeiro momento, sente-se saciada e amada por Ele. Começa a reconhecer Deus como Amigo, Companheiro... Pai. O Deus que é Bom e Misericordioso, que é Provedor, que nos ama e nos salva. As orações são fervorosas, a alma sente-se “enamorada” de Deus. Há muita alegria e entusiasmo nessa fase, que pode ser simbolizada pelo tempo em que os Apóstolos conviveram face a Face com Jesus. Eles compartilhavam da intimidade do Senhor, caminhavam juntos, tiveram a imensa graça de presenciar seus milagres grandiosos e de contemplá-lo Glorioso, refulgindo mais que o Sol no alto do monte Tabor[1]. Desfrutavam eles, então, da maravilhosa e reconfortante sensação de serem “amigos de Deus”.

    No momento seginte da Via da Purificação, porém, a alma começa a perceber que continua com os mesmos defeitos que tinha antes de conhecer a Deus, antes desta primeira conversão. É um momento difícil e delicado. Um símbolo desse estágio é a passagem em que S. Pedro, discípulo destacado em quem Jesus confiou de modo especial e a quem concedeu as Chaves do Reino, nega o Senhor por três vezes, chegando mesmo a dizer “Não conheço esse homem!” (Mt 26,74).

    É quando o convertido percebe que ainda precisa lutar, e lutar contra si mesmo, contra as suas fraquezas que ainda estão lá, vencer os seus medos e antigos vícios, pois ele continua sendo o mesmo ser humano pequeno e falho. É a “luta da carne contra o espírito” referida no Evangelho segundo S. Marcos (14,38) e em todo o capítulo 7 da Epístola aos Romanos. A oração, então, perde fervor; a alma tem a impressão de que Deus não lhe responde. Surge um vazio. E é então que dois possíveis caminhos se abrem, e um deles deverá ser escolhido: o da purificação propriamente dita ou o da queda.

1ª possibilidade: a purificação – Acontece se a alma começa a aprender que, mesmo em Comunhão com Deus, continua somente humana e fraca; que precisa se entregar a Deus a cada dia, a cada instante, e que nada menos que essa entrega total será suficiente. Entende que ser cristão é tornar-se verdadeiramente manso e humilde diante do Criador. Que as dificuldades, dores e sofrimentos são parte do percurso. Não é preciso e de nada adiantará buscar Deus nas emoções, nas sensações intensas, nas belas canções, nas orações inflamadas e ocas… É a silenciosa e simples Presença de Deus que lhe dá força, e nada mais é necessário. E essa pessoa – que não apenas confessa a Fé no muito falar, mas que verdadeiramente ama a Deus no seu íntimo –, prossegue, até se esquecer de si própria. Aqui surge um outro processo delicado: o da eliminação do amor próprio.

    Importante dizer que eliminar o amor próprio, nesse caso, não quer dizer desprezar-se ou odiar a si mesmo, num sofrimento doentio, esquizofrênico e estéril. Eliminar o amor próprio é "negar-se a si mesmo", como diz Nosso Senhor (Mc 8,34-35), no sentido de reconhecer-se pequeno, incapaz de alcançar a salvação por seus próprios méritos. Quer dizer aceitar suas limitações e render-se diante da Soberania Divina. É desprezar as próprias opiniões e apegos mesquinhos tendo em vista a Vontade de Deus, que é, sempre e infalivelmente, a melhor coisa. Por nós mesmos, nada podemos fazer (Jo, 15,5). É Deus Quem realiza em nós as grandes e pequenas coisas.

2ª possibilidade: a queda – acontece se a alma, nessa fase difícil, chega a não suportar mais o fato de que Deus já não lhe responde como antes. Que as emoções já não afloram da mesma maneira. Essa alma não suporta e não aceita que seja tão fraca. Começa então a considerar que, ao procurar Deus, talvez tenha exagerado na dose, que na realidade tudo não tenha passado de um furor vazio, uma ilusão... Afinal, nada mudou em sua vida e o mundo continua tão terrível como sempre foi. Fé começa a se enfraquecer, a pessoa recai nos vícios; perde-se então e desvia-se do caminho da purificação, retomando, por fim, sua vida antiga, a que levava antes da conversão, antes de ter se interessado por Deus.




Finalmente, aquele que vence a etapa da Via da Purificação começa a Via da Iluminação. É quando a alma adquire uma maior consciência da Presença de Deus, começa a ver o "toque" do Criador no seu dia-a-dia, percebe a manifestação do Amor divino às suas criaturas, mesmo no sofrimento, nas dores e dificuldades. Começa a perceber e saber que Deus está sempre com ela, e compreende que até as decepções deste mundo têm sua razão de ser, pois “tudo concorre para o bem daqueles que amam a Deus” (Rm 8,28). A alma mantém-se consciente do que se chama “Presença de Deus”, como diz o Senhor a Santa Catarina de Sena em seus “Diálogos”:

Nada foi feito e nada se faz sem a resolução da minha divina Providência. Em tudo o que permito, em tudo o que vos dou, nas tribulações e nas consolações, temporais ou espirituais, nada faço senão para o vosso bem, para que sejais santificados em Mim e para que minha Vontade se cumpra em vós.

(Diálogos, cap.166)

    A via da iluminação, entretanto, tem ainda um risco: a alma está subindo importantes degraus em direção a Deus, sim, porém, quanto maior a altura, maior poderá ser a queda. A alma deve permanecer no seu caminho de encontro a Deus e o desafio nessa fase é superar o orgulho espiritual, isto é, o de achar-se melhor que os outros, julgar-se especial, mais santo, mais sábio, mais iluminado. Corre o risco de achar inválida ou até ridícula as manifestações de fé alheias. Pode surgir o egoísmo e a soberba espiritual. A alma sabe que Deus está com ela, e ama também a Deus, mas tem dificuldade em amar igualmente às demais pessoas, porque agora enxerga claramente seus erros, e não os compreende. Quer que as coisas sejam “do seu jeito”, não aceita quem vive de modo diferente.

    Esta é uma etapa importantíssima a ser vencida. Se a alma conseguir superar mais este desafio, estará verdadeiramente próxima de Deus e de uma verdadeira vida cristã abençoada. O que, por sua vez, não significa ainda estar livre de todos os problemas e dificuldades deste mundo, mas saber lidar realmente bem com todas as situações, de modo sereno e tranquilo, mantendo sempre a Paz do Senhor em tudo. A alegria não mais se dissipa, o desespero não mais encontra lugar, pois existirá a consciência da permanente Presença de Deus em todo momento. 

    Reinará nesta vida uma alegria calma, silenciosa, perene, refletida, prudente, sensata. Vemos esse tipo de comportamento, reflexo da autêntica Comunhão com Deus, nas vidas dos Santos. É esta Fé e esta consciência que conferem o amor, a coragem, a paciência e a persistência necessárias para ser cristão na prática. O próximo estágio será o da transformação maior e definitiva da alma, a chamada Via Unitiva dos Perfeitos, em que se vive o mais alto estágio da perfeição cristã.


Talvez aquelas celebrações citadas no começo deste artigo, fundamentadas na emoção e na euforia, coloquem os fiéis que delas participam no caminho da purificação, naquele primeiro estágio em que a pessoa "encontra Jesus", como dizem: é aquele momento muito feliz, alegre e agradável, que vem após a conversão espiritual. É quando a pessoa começa a chegar perto de responder às grandes perguntas existenciais (Quem sou eu? De onde venho? Por que existo? Quem é Deus?).

    Os movimentos pentecostais ou carismáticos valorizam esse clima de emoção, e não há problema na emoção em si. Mas ocorre que, se a emoção é posta como condição ou parâmetro para a prática religiosa, com o tempo surgirá a inevitável crise de identidade espiritual. A alegria inicial não dura para sempre, ao menos não no plano sensitivo (expansivo). E então, quando a pessoa começa a sentir que está “enfraquecendo” na Fé, pois o seu entusiasmo começa a esmorecer, se o esforço se concentrar somente em manter aquela emoção inicial, o risco de cair é grande. É aí que o católico mal orientado deixa de ir à Missa, abandona a Igreja, esquece Deus. Sente como se tudo tivesse ficado no passado, quer resgatar a alegria inicial, não se conforma com o esfriamento dos sentidos. Muitos, nesse momento de fragilidade, acabam encontrando alguma seita fundamentalista e, na ânsia por recuperar as emoções iniciais, aderem a uma nova e falsa religião. Comumente, a partir daí continuam migrando de uma "igreja" para outra, num processo angustiante e sem fim, sem nunca encontrarem verdadeiramente o que buscam.

    Sem uma formação sólida, abrem-se as portas para a perda da fé verdadeiramente católica. É inútil querer "prender" alguém somente pela emoção. O pretenso e forçado "carismatismo" se situa fora da Fé, fora da Verdade, fora da Religião tal como Deus a criou. Ninguém pode depender das próprias emoções, tornando-se seu "refém" para continuar fiel a Deus. Deus está na alegria da conversão, mas está também na oração silenciosa, na contemplação do Mistério Divino, na quietude da adoração interior e verdadeiramente espiritual, no silêncio de uma reflexão cheia de amor e devoção sincera.




________
[1] Cf. Mt 17,1-9; Mc 9,2-8; Lc 9,28-36; 2Pd 1,16-18.

Referência:
GARRIGOU-LAGRANGE, Reginald. As Três Vias e as Três Conversões, 4ª ed. Rio de Janeiro: Permanência, 2011.




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5 comentários:

  1. Olá, só quero dizer que estou AMANDO o curso de teologia integral que voces estão dando e recomendo pra todos que querem aprender a fé católica como eu sempre quis. Aprendendo muito e fazendo anotações estou já ensinando outras pessoas da minha família também. Recomendo!! Muito obrigada

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  2. Conteúdos excelentes aqui, não consigo deixar de ler. Aprendendo muito
    Silvana

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    1. Sou grato pela oportunidade de dirigir um apostolado que ajuda almas.

      Fraternidade Laical São Próspero

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  3. Geralmente no protestantismo tem aquela famosa frase "quer aceita Jesus como único e suficiente Senhor e Salvador" aí a pessoa escolhe se aceita ou não isso pode ser dentro de uma Igreja mas pode ser num lugar fora da mesma também só lembrando que esse "aceitar Jesus" será na verdade se converter ao Jesus protestante. Mas "aceitar Jesus" pode ser também por exemplo uma pessoa vendo uma imagem de um santo e refletindo sobre a vida dele ou assistindo uma Santa Missa.

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  4. Os católicos apostólicos romanos devem evangelizar os protestantes pois o entendimento católico apostólico romano é que a Igreja Católica é a única correta. Então catolicamente falando se uma pessoa aceitou Jesus no protestantismo ela em última análise não aceitou Jesus da forma correta e consequentemente não está e nem será salva e portanto deve ser evangelizada para se tornar católica apostólica romana.

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