Por que os Papas não são mais coroados com a Tiara?


A COROAÇÃO DO PAPA com a Tiara, um símbolo de poder diretamente relacionado ao reconhecimento e à reverência que a Igreja presta a Cristo, a quem o Papa representa na Terra, como Rei do Universo (logo ao reinado social de Nosso Senhor no mundo), foi infelizmente abandonada por Paulo VI em 1963, como um gesto de suposta humildade. Todavia, não se esperava que a coroação de Paulo VI fosse a última cerimônia desse tipo na história da Igreja, nem que o papado fosse tão rapidamente privado de um símbolo que o definiu por mais de um milênio, a Tiara Papal.

    Até doar simbolicamente sua Tiara aos pobres — num gesto profundamente equivocado, em nossa opinião —, quase um ano e meio depois, Paulo VI voltou a usá-la, de acordo com o costume até então, i. e., quando tomou posse da Arquibasílica de Latrão, e novamente quando deu as bênçãos Urbi et Orbi (no Natal, na Páscoa) e ainda – pela última vez – quando celebrou o primeiro aniversário de sua coroação.

    A tradição da coroação do Papa, que remonta ao século VIII, foi substituída pela missa de inauguração do pontificado, com símbolos que passaram a ser considerados mais "pastorais", como o pálio e o anel do pescador. Claro que a noção de pastoralidade varia conforme o entendimento que se pode ter dela, já que a coroação remetia, como já dissemos, diretamente à realeza do próprio Cristo. Ao renunciar à tiara como um símbolo de poder temporal, equivocadamente a doando para fins caritativos, Paulo VI indica que compartilha de uma visão tida pelos seus antecessores como revolucionária na Igreja: a ideia que de que a religião deve ser vivida apenas ou principalmente no âmbito privado, não interferindo diretamente na política ou nas decisões dos govenrantes à frente das nações.

    Ora a salvação realizada por Cristo que se configura, consequentemente, na missão da Igreja, dirige-se ao homem em sua integridade, e não apenas a uma dimensão particular da vida humana; refere-se portanto, à pessoa que vive em sociedade e se reflete diretamente nesta última.

    A Tiara, com suas três coroas, representava justamente os três poderes do Sumo Pontífice (sagrado, de jurisdição e de magistério), mas com a mudança, a Igreja buscou um simbolismo meramente espiritual. O ofício e a pessoa do papa estão relacionados e ainda – apesar de algumas confusões – identificados com um símbolo que durante séculos expressou, manifestou e sobretudo sintetizou a ideia e a doutrina madura do Primado de Pedro, tanto teológica quanto juridicamente.

    Lementavelmente, não vemos um Papa usando a Tiara há quase sessenta anos. Mas o que realmente aconteceu com a Tiara Papal? Foi proibida? Quais eventos estão associados ao seu abandono? As leis, documentos, regulamentos e livros litúrgicos atuais da Santa Sé preveem uma coroação ou dizem algo sobre a Tiara Papal? Como foi o processo de adaptação da liturgia e das cerimônias papais às novas práticas?

    Este estudo tenta responder a essas perguntas, mas deve-se notar que se limita a detalhar principalmente fatos históricos – questões cerimoniais e litúrgicas são descritas apenas contextualmente.


I. O pontificado de Paulo VI (1963-1978) 


Após a eleição do Cardeal Giovanni Battista Montini, Arcebispo de Milão, ao Trono de Pedro, decidiu-se que a coroação solene do novo Papa ocorreria em 30 de junho de 1963, ou seja, nove dias após o mundo ouvir o Habemus Papam. Não havia muito tempo para criar uma verdadeira obra de arte como eram as Tiaras, mas essa missão foi assumida pelos membros da então famosa Escola Milanesa de Fra Angelico (Scuola Beato Angelico), sob o patrocínio dos fiéis da Arquidiocese de Milão, que quiseram financiar a nova tríplice coroa do Papa.

    Por razões práticas, as cerimônias de coroação foram transferidas para a Praça de São Pedro. A Basílica foi ocupada por plataformas temporárias erguidas em conexão com o conclave em andamento. Além disso, decidiu-se simplificar o próprio ritual, omitindo alguns elementos, o que significou que os rituais duraram quase 5 horas, como antigamente, mas apenas 3 horas (duração exata da transmissão da banda europeia).


Novembro de 1964 – doação da Tiara aos pobres, ao anúncio da Constituição Dogmática Lumen Gentium


Paulo VI, como esperado, decidiu que os trabalhos do Concílio continuariam. O entusiasmo não diminuiu. Os defensores de mudanças amplas e multifacetadas, fortemente influenciados por ideologias de esquerda, como muitos documentos testificam, ocuparam espaços importantes, assumiram funções estratégicas e assumiram a liderança no processo todo. O próprio Montini também sucumbiu à febre reformista prevalecente, o que deu origem a inúmeras controvérsias que não só duram até os nossos dias como também crescem em intensidade. A verdade irrecusável é que a Igreja, como um todo, nunca aceitou geralmente a mudança brusca e radical instalada naqueles dias. Essa "febre" era, no dizer do referencial Ceremoniale Romanum, "tão alta que exigia medicação de emergência, até mesmo ao próprio "Servo dos Servos de Deus", o Papa. Os trágicos eventos ocorridos durante a terceira sessão do Concílio Vaticano II, especialmente em novembro de 1964, foram decisivos: foi então que Paulo VI, sob a forte influência das discussões conciliares sobre os pobres, decidiu fazer esse gesto simbólico de doar sua Tiara em benefício deles.

    Não há como não abrir parênteses aqui para lembrar o episódio dos Evangelhos em que Judas Iscariotes, o traidor de Cristo, ficou incomodado pelo fato de uma discípula "desperdiçar" um frasco de caro perfume ungindo a santa cabeça de Nosso Senhor, alegando isso mesmo: que aquele produto caro devia ser doado em benefício dos pobres, ao que o Salvador respondeu com uma frase que todo adepto da revolução no seio da Igreja odeia: "Pobres, sempre os tereis convosco" (Mt 26,11; Mc 14,7; Lc 12,34, Jo 12,8).

    O Rei dos reis não repreendeu a quem desejava honrá-lo com a devida dignidade. Ao contrário, aceitou benignamente a homenagem, dando mostra de tê-la apreciado. Sim, a Igreja recebeu a ordem de cuidar dos pobres. Mas isso de modo algum se coloca em oposição à beleza e a dignidade da liturgia, do culto de adoração, na ornamentação dos templos sagrados.

    Retomando o contexto histórico, aquele tempo foi particularmente turbulento. A promulgação da Lumen Gentium aos 21 de novembro de 1964, com suas disposições relativas à colegialidade, contidas no capítulo 3, foram especificadas mais detalhadamente pela sua nota orientadora (nota praevia de 16 de novembro) a pedido do próprio Papa. Esses documentos – formulando declarações sobre o duplo sujeito do Primado – deram origem à instituição do Sínodo dos Bispos em 13 de setembro de 1965, e a discussão que os acompanhou no Concílio teve uma influência significativa sobre Paulo VI, que a partir de 13 de novembro de 1964 — isto é, a partir do momento da deposição simbólica da Tiara —, passou a usar apenas a mitra comum a todos os bispos. O contexto da discussão e os rituais que cercam o abandono desse forte símbolo indicam claramente que esse evento está envolvido em sérias discussões teológicas sobre a Primazia de Pedro, o que contradiz as alegações de que se tratavam apenas de sinais externos insignificantes.

    A triste cerimônia de solene abandono da Tiara por Paulo VI ocorreu numa sexta-feira, aquele 13 de novembro, imediatamente após a liturgia ecumênica celebrada em rito bizantino na Basílica de São Pedro, com a solene assistência papal. A Divina Liturgia foi celebrada – juntamente com vários outros patriarcas e arquimandritas – pelo então Patriarca Melquita de Antioquia, Máximo IV Saigh (este hierarca já havia celebrado a liturgia bizantina na presença do papa, inclusive durante o pontificado de Pio XII). Durante toda a cerimônia, a Tiara permaneceu sobre uma credencial atrás de uma das colunas do cibório do Altar, à esquerda do Papa (na foto abaixo, aproximadamente ao centro).

    Após a liturgia, Paulo VI, em vestes pontifícias e auxiliado pelo Prefeito de Cerimônias Apostólicas e pelos cardeais protodiácono (Alfredo Ottaviani) e protopresbítero (Alberto di Jorio), aproximou-se do Altar e depositou a Tiara. Este rito foi acompanhado por um comentário explicativo proferido pelo então secretário-geral do concílio, o Arcebispo Pericle Felici. Jornalistas notaram em suas reportagens que alguns dos presentes começaram a aplaudir em homenagem ao "pobre Papa" (Viva il Papa povero!), mas certamente havia os que lamentavam o que acontecia nesse momento emblemático. Vemos aí, claramente, um gesto que representava bem o novo entendimento de valores até então considerados intocáveis.

    Um dado importante: a assessoria de imprensa da Santa Sé informou, então, que aquele gesto deveria ser entendido e tratado como uma escolha pessoal de Paulo VI, e não como uma renúncia oficial à Tiara, um símbolo sagrado atemporal. O órgão de comunicação do Vaticano fez questão de enfatizar que ainda havia muitas outras Tiaras no tesouro da sacristia papal, que seriam ali mantidas e que ainda poderiam ser usadas para o fim a que se destinavam, por aquele ou qualquer outro Papa. Na prática, o ex-arcebispo de Milão nunca mais usou a tiara, embora essa questão não tenha sido regulamentada.

    O Cardeal Francis Spellman tentou obter a Tiara de Paulo VI, mas ela, realmente, foi dada aos americanos como um símbolo de gratidão pela sua assistência "generosa e duradoura" aos pobres, especialmente na forma de alimentos, medicamentos e roupas. O valor dessa ajuda foi então estimado em aproximadamente 1,3 bilhão de dólares (o que atualmente corresponde a mais de0 US$ 12 bilhões). A Tiara Papal viajou pelos Estados Unidos até 1968, quando foi decidido que sua residência permanente seria a Basílica da Imaculada Conceição, em Washington, onde a belíssima Tríplice Coroa papal, doada por Paulo VI, pode ser vista até hoje (foto abaixo).

Documentos e regulamentos posteriores – a reforma do Tribunal Pontifício e a Constituição Apostólica Romano Pontifici Eligendo


Demorou três anos para ocorrer qualquer menção à Tiara Papal nos documentos do Vaticano. Em 28 de março de 1968, Paulo VI anunciou o motu proprio Pontificalis Domus, que reformou (tudo estava sendo 'reformado' na Igreja) a organização da Casa Pontifícia, ou melhor, mudou a denominação "Corte Papal" (ou Corte Pontificia) para "Casa Papal" (Casa Pontificia), numa lamentável nova abdicação simbólica do poder temporal da Igreja. No capítulo 2, dedicado à Capela Papal (Cappella Pontificia), o parágrafo 4 afirma que à abolição está sujeita, entre outros, ao Custódio das Tiaras Papais (Custode dei Sacri Triregni). Este título tradicionalmente pertencia ao Joalheiro Papal.

    Embora o documento não o mencione, o cuidado das tiaras papais foi assumido pelo Sacristão do Palácio Apostólico (cargo por sua vez abolido por João Paulo II em 1991). Atualmente, o Tesouro da Sacristia Papal está sob a competência do Ofício das Celebrações Litúrgicas Papais.

    Durante o pontificado de Paulo VI, não foi publicado nenhum documento que mencionasse diretamente a Tiara Papal. O Papa também não decidiu fazer nenhuma alteração na Heráldica Papal ou do Vaticano. Somente quando já estava em idade avançada, ou seja, três anos antes de sua morte, decidiu resolver as questões relacionadas à morte do Papa e à eleição do novo Bispo de Roma. Assim, em 1º de outubro de 1975, foi publicada a Constituição Apostólica Romano Pontifici Eligendo, que no seu capítulo 7 trata, diretamente, sobre a coroação papal, tanto no título quanto no parágrafo a ela dedicado.

    O título do capítulo é: “De acceptanceione et proclamatione electionis necnon de coronatione novi Pontificis” (Aceitação, anúncio e coroação do novo Papa). O último parágrafo, o 92º do capítulo, diz:

Pontifex demum per Cardinalem Protodiaconum coronatur et, intra congruum tempus, Patriarchalis Archibasilicae Lateranensis possessem ritu praescripto capit. — Finalmente, o Papa será coroado pelo Cardeal Protodiácono e, no devido tempo, tomará posse da Arquibasílica Patriarcal de Latrão, de acordo com o rito prescrito.

    Mesmo com tanto tempo para refletir (11 anos se passaram desde o momento em que se livrou da tiara até o anúncio da constituição), Paulo VI decidiu que sua escolha não vincularia seu sucessor, e que caberia a este introduzir quaisquer mudanças legais na cerimônia da Coroação. Portanto, há incoerência no receio de se abordar formalmente essa venerável tradição, profundamente enraizada na vida da Igreja – apesar de tantas mudanças radicais que foram introduzidas tão súbita e rapidamente e com tanto entusiasmo após o encerramento do Concílio Vaticano II.


II. O pontificado de João Paulo I (1978)


Após sua eleição para a Sé de Pedro, João Paulo I (Albino Luciani, para o desgosto dos tradicionais, escolheu um nome que juntava os de seus dois predecessores imediatos, João XXIII e Paulo VI) decidiu que também não seria coroado, e seu pontificado começaria oficialmente em 3 de setembro durante a Missa, inaugurando o "Serviço do Supremo Pastor" (Ministero di Supremo Pastore).

    Como o pontificado de João Paulo I terminou após apenas 33 dias, ele não teve tempo de anunciar quaisquer documentos legalmente significativos ou introduzir qualquer mudança significativa. Mesmo assim, era mais do que claro que se tratava de mais um governante radicalmente progressista eleito para ocupar o Trono de Pedro. No entanto, ele entrou para a história como o último papa a usar a sedia gestatoria (o trono móvel).


III. O longo pontificado de João Paulo II (1978-2005)


Após a eleição de Karol Wojtyła, que num gesto já importante decidiu adotar o nome João Paulo I, os ritos de posse (22 de outubro de 1978) permaneceram inalterados. No entanto, ele já abordou diretamente a questão da coroação em sua homilia: 

Nos séculos passados, quando o Sucessor de Pedro tomava posse de sua Sé, o triregno ou tiara era colocado em sua cabeça. O último Papa a ser coroado foi Paulo VI, em 1963, mas após a solene cerimônia de coroação, ele nunca mais usou a tiara (equivocou-se aqui) e deixou seus Sucessores livres para decidir a esse respeito. O Papa João Paulo I, cuja memória está tão viva em nossos corações, não desejou ter a Tiara; nem seu Sucessor a deseja hoje. Não é hora de retornar a uma cerimônia e a um objeto considerados, erroneamente(!), como símbolo do poder temporal dos Papas.

    Ficou claro que João Paulo II não queria ser coroado e também não usaria Tiara, imitando seus dois predecessores imediatos. Além disso, ele declarou diretamente que, contrariamente à legislação vigente, tanto ele quanto seu predecessor renunciaram voluntariamente à coroação e à Tiara, sem emitir nenhuma regulamentação apropriada. Um triste e claro sinal de que a sucessão de trágicas "reformas" iniciada com o Concílio Vaticano II continuaria por mais este longo papado...

    Deve-se notar que a declaração referente a Paulo VI não ter usado a Tiara novamente após a sua coroação é falsa. João Paulo II também errou ao tentar justificar sua abordagem alegando que a Tiara fora "erroneamente" considerada um símbolo do poder temporal do Papa. Esta é, obviamente, uma visão míope, tanto do ponto de vista histórico quanto teológico. Além disso, é no mínimo difícil justificar tal afirmação, já que nem Paulo VI, nem João Paulo I e nem or próprio João Paulo II renunciaram à Tiara em seus brasões, o que parece contraditório. 

    Durante seu pontificado de quase três décadas (27 anos), João Paulo II se referiu à questão da Coroação (e indiretamente à Tiara) apenas uma vez em documentos oficiais. Foi na Constituição Apostólica Universi Dominici Gregis, emitida somente em 1996 (ou seja, 18 anos após ser eleito Papa), que substituiu a constituição de Paulo VI de 1975 (embora tenha sido preparada com base nesta). O capítulo 7, intitulado "De acceptatio, proclamatione et initio Ministerii novi Pontificis" (Aceitação, Anúncio e Início do Ministério pelo Novo Papa): 

Pontifex, sollemnibus caeremoniis inaugurationis Pontificatus persolutis, intra congruum tempus Patriarchalis Archibasilicae Lateranensis possessem ritu praescripto capiet. — Após a solene cerimônia de posse do Pontificado e dentro de um prazo oportuno, o Papa tomará posse da Arquibasílica Patriarcal de Latrão, segundo o ritual prescrito.

    À primeira vista, fica claro que a redação e a estrutura desse parágrafo foram retiradas da constituição de Paulo VI, mas o termo "coroação" foi substituído por "cerimônias solenes" (todas as traduções oficiais para as línguas modernas usam o singular 'cerimônia solene'). É interessante notar, porém, que os canonistas apontem, no caso de ambas as constituições, a natureza narrativa (descritiva) e não normativa (prescritiva) desse parágrafo. Além disso, alguns afirmam que a terminologia usada por João Paulo II não exclui a coroação em si, enquanto outros argumentam que a omissão da coroação possa expressar a intenção do legislador de abolir o rito da coroação.

    Independentemente da interpretação escolhida, o fato é que a coroação (ou Tiara) ainda não foi formal e diretamente abolida ou proibida.


IV. O pontificado de Bento XVI (2005-2013)


No final da vida de João Paulo II, o então Mestre de Cerimônias Pontifícias, Arcebispo Piero Marini, preparou livros litúrgicos relacionados à morte do Papa e à eleição de um novo. São eles, respectivamente, o Ordo Exsequiarum Romani Pontificis (2000), o Ordo Rituum Conclavis (2000) e o Ordo Rituum pro Ministerii Petrini initio Romae Episcopi (2005), que seriam aprovados pelo Papa Bento XVI após a sua eleição à Sé de Pedro (20 de abril de 2005). Esse livro organizou e expandiu significativamente os ritos relacionados ao início do Ministério Petrino, mas não menciona nem uma palavra sobre coroação ou Tiara, mesmo no contexto histórico.

     O segundo elemento mais importante dos ritos relacionados ao início do Ministério Petrino, depois da imposição do Pálio pelo Cardeal Protodiácono, foi a imposição do Anel do Pescador pelo Decano do Colégio Cardinalício. À semelhança da inauguração dos pontificados de João Paulo I e João Paulo II, também foi prevista a obediência habitual dos cardeais ou (e esta era uma novidade) dos 12 "representantes do Povo de Deus" (clero e leigos).

    Após anunciar sua renúncia (11 de fevereiro de 2013), mas antes de deixar o cargo (28 de fevereiro de 2013), o Papa Bento XVI introduziu diversas mudanças na cerimônia de posse (18 de fevereiro de 2023), entre as quais decidiu que as cerimônias de posse ocorreriam fora da Santa Missa, e não durante ela (essas regras foram aplicadas durante a inauguração do pontificado de Francisco). Como o Ordo foi o primeiro livro litúrgico desse tipo após o Concílio Vaticano II tornado público (ao contrário das cerimônias de coroação anteriores), alguns canonistas querem crer que a sua publicação ipso facto abole a coroação, mas o fato é que tal afirmação não aparece expressamente (verbis) em nenhum lugar.

    A interpretação da abolição da coroação, e com ela da Tiara, pode ser enfatizada pelo fato de Bento XVI ter sido o primeiro Papa a abandonar a Tríplice Coroa em seu brasão oficial, substituindo-a por um pálio. Isso causou comoção entre os especialistas em heráldica e, de fato, em termos de princípios e História, isso foi uma pequena revolução. Na declaração oficial do Vaticano, Mons. Andrea Cordero Lanza di Montezemolo explicou as mudanças da seguinte forma:

Hoje, a cerimônia que dá início a um pontificado não é mais chamada de coroação. A plena jurisdição do Papa começa no momento em que ele aceita sua eleição pelos Cardeais no Conclave, e não com a coroação, como acontece com os monarcas seculares. Essa cerimônia, portanto, é simplesmente chamada de inauguração solene de seu Ministério Petrino, como foi para Bento XVI em 24 de abril.


    O autor desta declaração também observou que Paulo VI, apesar de ter abandonado a Tiara, a deixou – juntamente com as Chaves de Pedro – como símbolo da Santa Sé. Isso não mudou até hoje, e no site oficial do Vaticano podemos encontrar diretrizes detalhadas sobre a bandeira, o brasão e o selo da Santa Sé, que em todos os casos incluem a Tiara e as Chaves de São Pedro.


V. O pontificado 'arrasa-quarteirão' de Francisco (2013-2025) 


Embora o pontificado de Francisco seja, com justiça, considerado o mais progressista da História recente, ele também não introduziu nenhuma mudança ou esclarecimento em relação à coroação e à Tiara. Ele adotou o Ordo Rituum pro Ministerii Petrini initio Romae Episcopi como seus ritos e, assim como Bento XVI, não incluiu a Tiara em seu brasão. Apesar das muitas mudanças e da introdução de novas simplificações em praticamente todos os ritos solenes da Igreja, a lacuna permanece. Em resumo, pode-se dizer que nem a Coroação nem a Tiara papais foram direta ou formalmente abolidas, menos ainda proibidas, apesar, da prática cerimonial aplicada de forma consistente desde novembro de 1964 e da publicação da Constituição Apostólica e do Livro Litúrgico, que não preveem uma coroação nem dizem nada sobre o uso da Tiara.

    O fato é que, apesar das mudanças introduzidas nas heráldicas, das declarações dos últimos Papas sobre não quererem ser coroados e não quererem usar a Tiara, nada disso impede um futuro Sucessor de São Pedro de discernir que um retorno às tradições seculares e veneráveis ​​da Igreja Romana será legítimo, conveniente, útil e frutífero.


V. Algumas informações e curiosidades extras


Sobre o recém-pontificado Leão XIV nada diremos, além de citar de passagem o fato de ele também não ter desejado retomar o rito de Coroação, o que teria sido uma enorme surpresa e certamente geraria grande resistência. Mas um fato interessante a se saber é este: mesmo os Papas que abriram mão da Tiara, de um modo ou de outro a receberam, ou foram associados a ela. Em belos arranjos florais nos Jardins do Vaticano, o brasão de Bento XVI e até o de Francisco apareceram com a Tiara (foto abaixo). Como explicaram os jardineiros papais à época, o trabalho foi feito de acordo com as tradições estabelecidas. 

Brasão de Francisco com a Mitra papal representado nos jardins do Vaticano.

    Especialmente durante o pontificado de Bento XVI, seu brasão com a Tiara foi usado com frequência, tanto em realizações artísticas quanto em situações mais oficiais, e até mesmo durante as liturgias papais e discursos.

    A conexão do Papa com a realeza, representada pela Tiara, continua tão presente e tão forte na mentalidade dos católicos que todos os sucessores de Paulo VI  (única exceção é João Paulo I, pela brevidade do seu pontificado) tiveram, sim senhor, suas próprias Tiaras. Em cada caso, elas foram dadas como presente aos papas: João Paulo II recebeu a tiara em 1981 dos fiéis da Hungria; em 2011, Dieter Philippi, um empresário alemão e famoso colecionador de chapéus, presenteou Bento XVI com uma Tiara feita por uma fábrica especializada na criação de paramentos litúrgicos para a liturgia bizantina; enquanto em 2016, até mesmo o ultra-progressista Francisco recebeu a Tiara do então presidente do parlamento macedônio.

    Parece que, às vezes, a piedade e a reverência pelo Vigário de Cristo na Terra precedem os regulamentos oficiais e as regras aplicadas. Como diz a Doutrina da própria Igreja, leis injustas não devem ser obedecidas e, afinal, o Bispo de Roma continua sendo o monarca que garante a unidade da mesma Igreja. Ou deveria ser.

Tapeçaria usada por Bento XVI (Liturgical Arts Journal)

    A famosa estátua de São Pedro (século XIII), localizada na Basílica do Vaticano e possivelmente criada por Arnolfo di Cambio, está associada a uma tradição piedosa que existe e é praticada até hoje. Trata-se de vestir a estátua com paramentos pontifícios (alva, estola, cruz peitoral, pluvial, rationale, Anel e Tiara) em cerimônias relacionadas ao Primado de Pedro (Catedral de São Pedro em 22 de fevereiro, São Pedro e São Paulo em 29 de junho) e durante eventos importantes para a Igreja ou o Papado (coroação do Bispo de Roma, sessão solene do Concílio, etc.). As vestes e insígnias com as quais a estátua de São Pedro está vestida podem ser admiradas diariamente no Museu do Tesouro da Basílica de São Pedro, no Vaticano (foto abaixo). 







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Fonte:
Ceremoniale Romanum, 'What happened to the Papal Tiara?', disp. em:
https://caeremonialeromanum.com/en/2023/12/11/what-happened-to-the-papal-tiara/
Acesso 23/5/2025.

Bibliografia recomendada:
• MÜNTZ, Eugène, La Tiare pontificale du VIIIe au XVIe siècle, Paris 1897.
• Ufficio delle Celebrazioni Liturgiche del Sommo Pontefice, Inizio del Ministerio Petrino del Vescovo di Roma Benedetto XVI , Città del Vaticano 2006.
• BRUZDZINSKI, Andrzej, Herb Papieża Benedykta XVI. Symbolika i przesłanie , Cracóvia 2018.


Um comentário:

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