O rito tridentino é dogma de fé? A Liturgia e a autoridade do clero posta em xeque

[A imagem retrata o Cardeal Annibale Bugnini, secretário da Comissão de Liturgia pós-Vaticano II e o grande arquiteto da reforma que resultou na missa nova, sendo cumprimentado pelo papa Paulo VI. Em 1975, o mesmo Paulo VI removeu Bugnini, então Arcebispo, de sua posição como Secretário da Sagrada Congregação para o Culto Divino e os Sacramentos, dissolveu a própria Congregação e, em 1976, o exilou para a nunciatura do Irã, segundo fortes indícios por ter descoberto que era maçom; todavia a sua obra magna, a missa nova, permanece até hoje.]


RECEBEMOS DO LEITOR Wesley Marcos Vicente, ao nosso artigo intitulado "'Missa de Sempre' – Faz sentido essa expressão?" o comentário que reproduzimos abaixo, seguido de nossa resposta, a qual julgamos que possa vir a ser útil para outros. O Bom Deus, pela intercessão da Santíssima Virgem, preserve-nos de ensinar ou induzir a qualquer erro.

O estudo de vocês é muito bom e profundo. Contudo, cabe ressaltar algumas perguntas.


A primeira: O Papa São Pio V criou um dogma quando determinou que o rito tridentino? Respondo: Não. Pois, sabemos todos que um dogma deve ser universal em relação a geografia (imutável em todo o mundo), tem que ser uma verdade atemporal (desde sempre, ou desde que Deus a criou ou a permitiu). Explico: Vocês mesmo tentaram com contorcionismo interpretativo dizer que o que ele determinou com "SEMPRE" não é bem assim ("Não quer dizer que exatamente aquele rito, com todas aquelas mesmas normas"), pois existem inúmeros ritos espalhados pelo mundo inteiro, como também a liturgia sofreu muitas mudanças ao longo do tempo ("Não se pode negar que houve um desenvolvimento da liturgia no correr dos séculos"). Então, se não é dogma, não vejo o porquê deste alvoroço em tratar a missa nova como válida, pois se vamos aceitar a reunião de milhares de bispos em um concílio e, no fim, ser apresentado um documento, aceito por todos, e adicionando uma reforma litúrgica como legítimo, não temos o que discutir, entretanto, se vamos considerar este concílio como "fumaça do demônio", então para o mundo que eu quero descer, pois não há nada mais herético e protestante que não acatar a decisão de bispos legalmente constituídos em um concílio legalmente instituído com documentos legais.


Segunda: O autor deste artigo te qual autoridade e formação? Acredito eu que ele é liturgista, teólogo, filósofo, historiador e sacerdote, pois achei muito pretensioso quando disse: "a chamada "missa nova" pode ser considerada um desvio completo e radical desse mesmo desenvolvimento orgânico presente em toda a história da Igreja". No texto cortado o autor determina que aquilo que foi legalmente constituído é radicalmente errado (Missa nova), enquanto o que outra Missa que também foi legalmente constituída é radicalmente verdade. Como ele identificou esse "erro" e esta "verdade"? Sabemos que aquilo que não é dogma pode ser modificado (como vimos na primeira pergunta), sabemos também que muitos outros pontos da vivência da Igreja sofreram alterações e evoluções ao longo do tempo, não vou aprofundar, mas a adoração Eucarística (com Jesus exposto) começou no segundo milênio, o monaquismo moldou a Europa, mas apareceu à posteriori, a forma de aplicar e exigir os sacramentos também foi sendo aperfeiçoado, etc. Então vejo uma certa rebeldia e precipitação por parte dos autores e dos tradicionalistas, talvez por isso alguns foram excomungados.


Por fim, temos uma hierarquia a seguir, e devemos seguir, enquanto um papa não declarar o contrário, precisamos seguir as determinações dos concílios e do magistério da igreja. Não sejam protestantes e por um conjunto de cismas abandonem a Igreja e a sua santa hierarquia.


Não estou defendendo abusos litúrgicos, mas temos que ser coerentes com o evangelho e com a sã doutrina.


Paz e bem,

Wesley Marcos Vicente


    Caríssimo Wesley, a Paz de Nosso Senhor seja sobre a sua vida e a Luz divina ilumine o seu entendimento,

    Agradeço pelo comentário direto e redigido honestamente, embora não seja tão equilibrado quanto  me pareceu que pretendia ser. O Sr. colocou diversos problemas, partindo de várias premissas e pontos apresentados como verdades absolutas, equivocando-se muitas vezes. Vou tentar esclarecer tudo, pedindo em troca, de sua parte, apenas a humilde honestidade para tentar entender, antes de fincar o pé em suas opiniões pré-concebidas.


    Primeiro, o rito em si não é e nem pode ser propriamente dogma, porque todo dogma se refere a alguma definição da Doutrina, o que aí não cabe, embora o Concílio Ecumênico de Trento tenha anatematizado solenemente uma série de práticas que se tornaram comuns na missa nova, sob a total anuência dos bispos e dos últimos papas reinantes. Mas o rito, isto é, a liturgia, esta reflete, sim, diretamente a Doutrina, porque aquilo que se reza, no modo como se reza – a Lex orandi – define aquilo que se crê – a Lex credendi. Assim é que nosso Patrono São Próspero de Aquitânia definiu, com este célebre axioma de sua autoria sendo citado há séculos em documentos da Igreja e em obras teológicas fundamentais: “Lex orandi, lex credendi”, cuja forma completa, aliás, é “Legem credendi lex statuat supplicandi” (o 'suplicandi' é sinônimo do 'orandi', mais usado hoje), ou seja, “A lei da fé é determinada pela lei da oração”. Assim a oração da Igreja, como ensina esse Santo Doutor, é uma fonte autorizada da Teologia. Interessante é que o próprio Catecismo atual reafirma essa verdade:


A fé da Igreja é anterior à fé do fiel, que é chamado a aderir a ela. Quando a Igreja celebra os sacramentos, confessa a fé recebida dos Apóstolos. Daí o adágio antigo: «Lex orandi, lex credendi; a lei da oração é a lei da fé», ou: «Legem credendi lex statuat supplicandi; a lei da fé é determinada pela lei da oração», como disse S. Próspero de Aquitânia (Indiculus, c. 8: DS 246. PL 51, 209, séc. V). A lei da oração é a lei da fé, a Igreja crê conforme reza. A liturgia é um elemento constitutivo da Tradição santa e viva.

 (CIC n.1124) 


    A liturgia – sendo o seu auge e seu eixo central a santa Missa –, é fonte de Teologia na medida em que a salvação vem inteiramente por iniciativa de Deus e, assim, a Igreja sempre rezou pedindo pela conversão dos pagãos e dos hereges e cismáticos, sejam judeus, islâmicos e todos os que não buscam a verdadeira Fé.

    Veja então que não se trata de um “desenvolvimento” da liturgia, como você diz, quando simplesmente se joga fora o que antes havia, isto é, aquilo que foi pregado e praticado desde os Apóstolos e desde sempre, e simplesmente se elabora uma coisa total e radicalmente nova para colocar em seu lugar. Consegue entender isto? Já o que se deu sob Pio V foi, sem dúvida, um desenvolvimento, porque o que houve aí foi uma espécie de síntese e padronização dos ritos que já eram celebrados, sem nenhuma alteração substancial (como reconheceu Ratzinger em sua obra 'Minha vida' [2005], juntamente com todos os grandes autores que se debruçaram sobre este assunto).

    Tal desenvolvimento é algo semelhante ao que aconteceu, por exemplo, no Concílio de Niceia (325), o primeiro concílio ecumênico (universal) da História, quando os bispos reunidos elaboraram o Credo Niceno, com a finalidade de combater a heresia ariana (que negava a divindade de Cristo, como Pessoa da Santíssima Trindade, consubstancial a Deus Pai). Eles não mudaram em absolutamente nada a essência do antigo Credo, o Símbolo dos Apóstolos, ao contrário: somente o confirmaram, usando para isso de termos claros que tornaram os seus pontos principais ainda mais nítidos. E não poderia ter sido diferente. Assim também no caso da Missa: desde sempre ela tem a mesma estrutura e a mesma forma, com a mesma clareza nos seus pontos essenciais, sendo os primeiros estes, que já elencamos em nosso texto:


• O claríssimo sentido de que o que se passa durante a celebração da Missa é a Renovação incruenta do Sacrifício de Cristo Salvador (não uma 'festa do povo', uma 'partilha', um encontro de irmãos em torno da mesa para 'celebrar a palavra', 'dividir o pão', ou qualquer coisa do tipo);

• O claríssimo sentido de que Nosso Senhor está verdadeiramente Presente nas espécies (Pão e Vinho) consagradas;

Regras fixas e rígidas com relação ao que o sacerdote deve dizer e fazer durante a celebração;

• A separação clara entre o papel do sacerdote e o do povo na participação do culto.

• O claríssimo sentido de que Deus está no centro de tudo o que se faz e que o papel do sacerdote é secundário: a Consagração feita versus Deum é justamente um reflexo deste princípio essencial; padre e povo rezam e adoram juntos, todos voltados para Deus.

 

Na missa nova pós-Vaticano II, porém, esses elementos todos estão ausentes ou, no mínimo, escondidos. Tornou-se necessária certa formação teológica para encontrá-los, e isso é um grave problema, porque a Fé da Igreja é simples, suas verdades devem ser ditas e expostas claramente, do modo mais objetivo e direto possível, porque a sua doutrina de salvação é para todos. Especialmente para os simples.

Curiosamente, o Sr. menciona “contorcionismo interpretativo” em nosso texto, quando o resultado e os frutos nefastos das alterações impostas na missa nova são tão flagrantes e tão evidentes que – mui honestamente falando –, somente uma ignorância invencível de altíssimo grau ou o pior tipo de cegueira voluntária poderia fazer com que alguém não os notasse. É preciso muito, mas muito contorcionismo interpretativo – e mental, lógico, teológico –, para se pretender convencer alguém (ou convencer-se a si mesmo) de que não vemos aquilo que vemos após a revolucionária reforma litúrgica,  e também doutrinária, moral e disciplinar promovida pelo Vaticano II.


Que autoridade é necessária?


Quanto à segunda parte do seu comentário, veja que interessante: para explicar porquê e como a liturgia da Igreja está diretamente relacionada aos seus dogmas, citei São Próspero de Aquitânia. Pois a nossa Fraternidade o elegeu como Padroeiro justamente por ser um Santo leigo. Embora pouco conhecido, estamos falando de um dos mais importantes teólogos da história da Igreja, um de seus ilustríssimos Doutores, apelidado “O Melhor Discípulo de Santo Agostinho”, o conselheiro e (pasme!) mentor particular do papa São Leão Magno, a quem ditava cartas, e um homem cujos escritos foram usados no XVI Concílio de Cartago para refutar a heresia pelagiana... Tudo isso, sendo leigo.

Imagino quantas vezes ele deve ter ouvido perguntas parecidas com essa que o Sr. faz: “Qual a sua ‘autoridade’ para refutar heresias?”... “Qual a sua ‘formação’ para ensinar ao próprio Papa?”... “Quem és, para querer corrigir os padres e os bispos?”...

Sou só um leigo que se consome por ver a grande destruição na Casa de Deus. Sim, eu estudei Teologia e Filosofia em quatro instituições de ensino diferentes (Inst. Teológico de São Paulo, FAPCOM/Paulus, Faculdade Claretiano e Mosteiro de São Bento de SP), além de ter concluído uma grande quantidade de cursos livres relacionados. Sou autor de livros, tenho diversos artigos publicados e tenho atuado há 15 anos como editor, articulista e/ou revisor para algumas das principais editoras católicas do nosso país (Molokai, Caritatem, Centro Dom Bosco, Realeza/Obras Católicas, etc.). Estive à frente de diversas publicações católicas impressas e fui contratado como colaborador do órgão oficial de comunicação da Arquidiocese de São Paulo, da Cáritas Arquidiocesana de São Paulo e da Congregação do Oratório de São Filipe Neri. 

Mas, realmente, nada disso é muito importante para as questões que ora discutimos. Canudos, diplomas e certificados de conclusão de curso são totalmente desnecessários para se enxergar o óbvio; São Próspero de Aquitânia não os tinha, mas ele tinha o principal: a autoridade de quem defende a Verdade. Simples assim.

No tempo da grande heresia ariana, sabe quem teve papel fundamental no resgate da autêntica Fé cristã e católica, para impedir – por Graça divina – que a Igreja naufragasse de vez nos abismos de uma falsa doutrina? Além de um pequeno grupo de padres e bispos que se mantiveram fiéis, liderados por Santo Atanásio, foram os leigos fiéis que fizeram a diferença; boicotando os hereges, denunciando-os, manifestando-se continuamente, pressionando seus bispos, o Papa, até o Imperador... e abrindo os olhos daqueles seus irmãos que se deixavam iludir pelos hereges. 


Naquele tempo, como hoje, os católicos realmente fiéis reduziram-se a um pequeno grupo (‘um punhado’, no dizer de Santo Atanásio); mas, pela Graça divina, puderam fazer a diferença. Eles não possuíam nenhuma "autoridade" superior, nem foi algum tipo de “formação” dada por alguma instituição humana e corrompida que lhes permitiu manter a fidelidade e bradar por justiça, até que ela se fez. Sua autoridade estava na fidelidade e no zelo pela Verdade.

Se amanhã o Lula da Silva fosse eleito Papa pelo Colégio dos Cardeais, e a imensa maioria dos bispos da Igreja o reconhecesse como tal, o que seria preciso para se reconhecer que algo assim estaria, então, muito errado na Igreja? Que tipo de "autoridade" seria requerida a alguém para que dissesse que tal coisa seria um absurdo? Pois eu tenho certeza de que, mesmo se algo assim acontecesse, uma parte do laicato ainda o aceitaria, afinal, é o Papa... Mas uma parte resistiria: a parte dos verdadeiros católicos.

Assim, quando o Sr. cita “a reunião de milhares de bispos em um concílio e, no fim, ser apresentado um documento, aceito por todos, e adicionando uma reforma litúrgica como legítimo...”, preciso observar que isso é totalmente falso. O Vaticano II nunca, jamais foi "aceito por todos". Já ouviu falar no Cardeal Alfredo Ottaviani? Em Dom Marcel Lefebvre? Em Dom Antônio de Castro Mayer? Mais recentemente, em Dom Carlo Maria Viganò? E nos Cardeais Müller, Caffarra, Brandmüller, Burke, Sarah, Athanasius Schneider? Esses são bem conhecidos, mas sempre houve – e estão aumentando muito em número nos últimos tempos – entre o clero e os mais altos dignitários da Igreja, vozes denunciando os erros, a infidelidade a Cristo, as heresias, a traição da Fé, o abandono da sagrada Tradição, a ruptura com o Magistério perene. Junto com eles, muitíssimos grandes teólogos, doutores e, como nos tempos de Santo Atanásio, os fiéis católicos que guardam o zelo pela Casa de Deus. 

Essas vozes têm sido impiedosamente caladas ou, simples e solenemente, ignoradas. Mas a situação está chegando a um limite de tensão insuportável agora, de modo que algo grande deve acontecer logo. A liturgia tradicional, que já vem sendo sufocada, deve ser radicalmente proibida em breve. Vem aí o novo sínodo, com as mesmas novas-velhas propostas revolucionárias ou diabólicas de sempre: fim do celibato sacerdotal, ordenação de mulheres, sacramentos aos homossexuais, tolerância para com o aborto, celebrações pseudo-ecumênicas em comunhão com cismáticos, etc, etc...

Por fim, não se pode falar em “abusos litúrgicos” e querer, ao mesmo tempo, absolver o Vaticano II e seus papas: esses abusos só se tornaram possíveis, no nível em que os temos hoje, por causa deles. De fato, toda essa situação foi friamente concebida, planejada, calculada e implantada pelos revolucionários introduzidos no seio da Igreja, com a finalidade de implodi-la, quer dizer, destruí-la completamente a partir de dentro[1]. Há mais de sessenta anos, eles têm obtido êxito quase total. Mas as portas do Inferno não prevalecerão, e o Imaculado Coração triunfará no final.

___________
[1]
A respeito, sugiro fortemente a leitura do livro “Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II”, do pesquisador inglês Michael Davies , o qual se limita a apresentar as realidades dos problemas em questão, totalmente fundamentado em documentos e registros históricos e livre de paixões pessoais, e que considero uma introdução realmente obrigatória para quem pretende sair dos "achismos" e começar a entender mais profundamente a questão.



2 comentários:

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