Quais são, afinal, os erros do Concílio Vaticano II? – parte 2


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O QUE É é um Concílio Ecumênico? Aqui chegamos ao mais lamentável equívoco cometido por certos católicos tidos como tradicionalistas, e que é defendido na conferência citada na primeira parte deste artigo: a tese de que deveríamos aceitar, ou pelo menos sermos indulgentes, com o Vaticano II, porque este se insere numa “continuidade” com a Tradição e em relação a todos os Concílios precedentes da santa Igreja. Ora isto é nada menos que falso. Realmente não há como defender essa ideia quando se conhece a história por trás da coisa toda. A ruptura com a continuidade do Munus Docendi praticado pela Igreja desde sempre é tão absolutamente clara e tão radical que chega a tornar difícil considerar que aqueles que não a admitem – afora os casos de simples ignorância –, não o façam por pura má-fé.


    É preciso observar um ponto importantíssimo nesta análise: o Munus Docendi (o poder de ensinar a Sã Doutrina) só pode ser exercido in Persona Christi, e isso está muito além do poder de governo temporal sobre questões  materiais e ações práticas da Igreja, tanto internas quanto externas. Para o Papa, bem como para o Colégio dos Bispos, vale o que o próprio Cristo disse de Si mesmo: “A minha doutrina não é minha” (Jo 7,16); até Nosso Senhor, enquanto Homem e enquanto Filho, quando ensina, é exclusivamente a Palavra (Verbo) de Deus Pai, com o qual é Um só. Ainda mais radicalmente, a doutrina de nenhum Papa é dele próprio; ele não pode propagar suas ideias particulares ou aquilo que considera bom e justo, mas deve ser sempre a Voz e o Coração de Cristo, reafirmando sempre a única e comum Doutrina da Igreja universal, pois exclusivamente esta conduz à vida eterna. Nenhum sacerdote, Bispo ou Papa está autorizado a proclamar, defender ou ensinar os seus próprios pensamentos fazendo uso do seu posto hierárquico na santa Igreja.


    Em busca da verdade no meio do caos atual e em meio a tantos erros que se localizam nos extremos do problema, muitos têm caído na cilada de crer que para se encontrar a saída é preciso simplesmente rejeitar todo radicalismo. Assim, a solução estaria em negar tanto a hipótese dos que consideram que o Vaticano II deva ser desconsiderado como um mal em si mesmo, quanto a tese oposta, daqueles que pensam, pregam e se comportam como se a Igreja tivesse passado a existir somente depois do Vaticano II, e tudo o que foi feito antes não passasse de um amontoado de convenções descartáveis, decisões e tradições meramente humanas que não valem mais.

    Estará a verdade realmente nessa moderação, nessa abstenção de tomar partido, na neutralidade do meio termo entre os que combatem e os que supervalorizam o Vaticano II? Ora ser cristão sempre foi sinônimo de radicalidade, e buscar esse meio termo é o erro clássico da visão hegeliana, que procura identificar sempre os extremos de cada questão para encontrar a certeza em uma espécie de moderação intermediária. Ao contrário, "teu 'sim' seja sim e o teu não seja 'não', porque o que passa disso provém do maligno", foi o que ensinou Nosso Senhor. Esquecem-se disso os que procuram a resposta em atalhos entre o simples "sim" e o simples "não" às novidades trazidas por um movimento que têm reduzido a Doutrina, a moral, a disciplina e a liturgia da Igreja a pó.


    E a simples verdade, o simples "sim" ao qual todo cristão está obrigado, é a de que o Concílio Vaticano II, de um modo geral, foi impulsionado por um espírito pouco ou nada católico, e que esse mesmo espírito ele conseguiu implantar. Seu antropocentrismo (o homem no centro das atenções, não Deus) é tão inegável quanto inaceitável; sua simpatia pelo mundo e sua admissão aos modismos enganosos dos tempos, que transpira em cada um dos seus textos, é simplesmente herético. Suas ambiguidades flagrantes, suas contradições absurdas, suas omissões e, sobretudo, as gritantes mudanças que impôs à Doutrina imutável, bem como à pastoral autenticamente católica, são coisas que precisam ser combatidas e sumariamente  expurgadas. Assim como vem denunciando sem meios tons o Arcebispo Carlo Maria Viganó, o Vaticano II merece um simples, radical e claríssimo NÃO (veja). Pois bem, de tudo o que afirmamos nesta introdução, a partir daqui, veremos minuciosamente os seus porquês.



O Concílio Vaticano II, no mínimo, já nasceu substancial e estruturalmente ambíguo


Em primeiro lugar, é preciso lembrar que a ambiguidade invade a própria natureza jurídica efetiva do Concílio Vaticano II (a partir daqui, usaremos a sigla CVII). Tal natureza não é clara e parece indeterminada, porque desde o início foi declarado como um simples concílio pastoral, que não pretendeu definir dogmas nem condenar erros (cf. Alocução de Abertura de 11 de outubro de 1962 por João XXIII e notificatio aos 5 de novembro de 1965), algo que nunca antes havia ocorrido em toda a história da Igreja, pois sempre foram estas, exatamente, as principais finalidades dos Concílios ecumênicos. Muitos se confundem, mas as duas constituições a que se atribuem o título de "dogmáticas" (Dei Verbum, sobre a revelação divina, e Lumen Gentium, sobre a Igreja) só recebem tal nome em sentido puramente descritivo, pelo fato de tratarem de assuntos que têm relação com o dogma da Fé, e não por definirem alguma verdade que deva ser crida por toda a Igreja.


    O CVII foi definido como apertis verbis, isto é, "Magistério ordinário supremo e manifestamente autêntico", por Paulo VI: eis aqui, já de início, uma figura de linguagem estranha e imprópria para um Concílio ecuménico. Todo Concílio até então consistiu, desde sempre, num exercício extraordinário do Magistério, que tem lugar quando o Papa decide exercer, excepcionalmente e em simultâneo com todos os bispos por ele reunidos, a suprema potestas (o poder e a competência) sobre a Igreja inteira, algo que ele possui por direito divino.


    Qualquer que seja a natureza jurídica efetiva do CVII, é certo que este não apresentou um ensino marcado pelo sinal da infalibilidade. Isso é tão certo que o próprio Paulo VI disse que seus ensinamentos deviam ser acolhidos "dócil e sinceramente" pelos fiéis, isto é, com o assentimento religioso interior que é requerido para textos pastorais. Esse assentimento foi sempre a praxe na Igreja, já que, via de regra, nunca se encontraram razões graves o suficiente para que os bons teólogos e os fiéis bem instruídos não se submetessem. Mas que razão mais grave poderia haver, para que essa postura mudasse, do que a alteração do Depósito da Fé?

    Durante o atormentado desenrolar do CVII, cardeais, bispos e teólogos fiéis ao dogma apontaram, por repetidas vezes, as ambiguidades e os erros que se infiltravam nos seus textos. Erros esses que hoje, depois de seis décadas de reflexões e de estudos qualificados, a Igreja compreende com precisão cada vez maior.


Graves erros desde a alocução de abertura e na mensagem ao mundo

Não é possível, em um breve artigo como este, apresentar e esclarecer por completo a grande coleção de erros atribuídos ao CVII. Tentaremos, todavia, apresentar um panorama geral e seus erros mais importantes, começando pelos que estão contidos já na alocução de abertura e na mensagem para o mundo inteiro, aos 20 de outubro de 1962. São textos que, não pertencendo formalmente ao conteúdo do Concílio, denunciam já com grande clareza como todo o seu planejamento, bem como toda a sua orientação e pretensão se deram orientados pela ala progressista, os inovadores neomodernistas infiltrados na Igreja.


    O célebre discurso de abertura de João XXIII contém, além de diversas "profecias" com visões do futuro que foram gritantemente desmentidas pelos fatos que se seguiram ('...a Providência nos conduz para uma nova ordem de relações humanas que se orientam para a realização de desígnios superiores'), verdadeiros e claros erros doutrinais, a saber:


    Erro 1: Uma concepção mutilada do Magistério.

    Este erro está contido na inacreditável afirmação – que foi retomada por Paulo VI no discurso de abertura da segunda sessão do concílio (29 de setembro de 1963) –, segundo a qual a Santa Igreja renuncia a condenar os erros(!?): "a Igreja nunca deixou de se opor os erros: ela própria os condenou, e muito severamente. Mas hoje, a esposa de Cristo prefere recorrer ao remédio da misericórdia a brandir as armas da severidade. Estima que, mais do que condenar, ela responde melhor às necessidades da nossa época realçando e valorizando as riquezas da sua doutrina".


    Renunciando, assim, a utilizar-se de sua autoridade (que vem de Deus) para defender o Depósito da Fé e ser, como sempre foi, o necessário auxílio das almas (como é o seu papel), advertindo quanto aos erros que comprometem a sua salvação eterna, o papa Roncalli faltou para com os seus deveres de Vigário de Cristo. Condenar o erro é essencial para que se mantenha a Verdade intacta, e por isso mesmo a Igreja jamais, em tempo algum, deixou de fazê-lo.


    Além disso, a condenação do erro é sumamente necessária do ponto de vista pastoral, porque sustenta os fiéis, sejam ou não eruditos, com a autoridade do Magistério, da qual podem revestir-se para se defenderem do mesmo erro, cuja "lógica" é sempre sedutora e quase sempre mais astuta que a deles próprios. Mas isso ainda não é tudo: a condenação do erro possibilita àquele que se confronta com o mesmo erro refletir, confrontar suas impressões com o ensino infalível da Igreja. Por isso, a condenação do erro é a grande obra de misericórdia da santa Igreja. Sustentar que essa condenação não deva acontecer significa, por um lado, defender uma concepção mutilada do Magistério, e por outro lado, substituir a acolhida com a pessoa que está no erro, que é a verdadeira praxis dos cristãos, pela acolhida do próprio erro. Assim é que vemos hoje, por exemplo, as tais "pastorais LGBTQI+" não tentando converter as pessoas e trazê-las para a Luz divina, ensinando-lhes a abandonar as práticas pecaminosas que desagradam a Deus, mas simplesmente lhes dizendo que são aceitas do jeito que são, e que Deus aceita tudo, o que se configura em gravíssima heresia e traição da Fé.


    O erro doutrinal no texto de João XXIII se manifesta numa falsa alternativa que insinua que para validar a verdadeira Doutrina não é preciso advertir quanto aos erros, como se as duas coisas – Verdade e engano –, pudessem caminhar juntas, harmonicamente, sem prejuízo para as almas. Se assim fosse, não haveria necessidade da Graça divina, nem do exercício da autoridade da própria Igreja, personificado maximamente pelo Papa. A frase de João XXIII contém uma forma de pelagianismo, típico de toda concepção racionalista da Fé, algo que foi muitas vezes condenado pelo autêntico Magistério.


    A demonstração da validade da doutrina e a condenação dos erros, cada um por sua vez, sempre estiveram necessariamente presentes na História da Igreja. E as condenações não visavam só as heresias e os erros teológicos no sentido estrito, mas caíam implacavelmente sobre todas as concepções não cristãs de mundo, inclusive aquelas que se apresentam como opções e/ou caminhos diversos, já que Nosso Senhor advertiu expressamente: "Quem não está comigo, está contra Mim. E quem não recolhe comigo, dispersa" (Lc 11,23s).


    A posição heterodoxa tomada por João XXIII, mantida pelo Concílio e cada vez mais radicalmente continuada depois dele, até hoje, desnudou a Igreja da inflexível armadura que sempre a protegeu, essa couraça bem conhecida e muitas vezes apreciada até por seus inimigos.


    Erro 2: a contaminação da Sã Doutrina pelo pensamento "moderno", o qual é intrinsecamente anticatólico.


    A essa renúncia proclamada de combater o erro, a essa desgraçada abdicação, está ligada outra célebre e gravíssima afirmação de João XXIII, retomada por ele na alocução aos Cardeais de 14 de janeiro de 1963, segundo a qual a "penetração doutrinal" deveria ser feita "em correspondência da mais perfeita fidelidade à autêntica doutrina", a qual, no entanto, devia ser "estudada e exposta através das formas de investigação e da formulação literária do pensamento moderno"(!?), sendo uma coisa a substância da Doutrina do Depositum Fidei, e a outra coisa a forma pela qual essas verdades serão enunciadas, e que esse sistema seria preciso “ter em grande conta, recorrendo a um modo de as apresentar que corresponda melhor a um ensinamento de carácter sobretudo pastoral". Esta mesma noção foi retomada expressamente pelo Concílio Vaticano II no decreto Unitatis redintegratio sobre o ecumenismo, no seu art. 6.


    O princípio liberal e modernista que pretende que a antiga Doutrina seja revestida de uma forma nova, inspirada no "pensamento moderno", já tinha sido categoricamente condenado por um saudosíssimo Papa Santo, o heróico São Pio X (em sua Pascendi 1907, § II, c; decreto Lamentabili, n.s 63s, DZ 2064-5 / 3464-5) e também por Pio XII (Humani Generis AAS 1950, 565-566). O que o Papa Roncalli propunha era simplesmente, portanto, uma doutrina que já tinha sido formalmente condenada como herética pelos seus predecessores: a típica heresia modernista.


    Com efeito, não é possível aplicar à verdadeira Doutrina católica princípios do "pensamento moderno" o qual, em todas as suas formas, já nega a priori a existência de uma Verdade absoluta. Segundo o pensamento moderno, tudo é relativo ao Homem, sendo ele o único valor absoluto, divinizado em todas as suas manifestações. O pensamento moderno é, por isso, intrinsecamente contrário a todas as verdades fundamentais do Cristianismo, sendo contrário à ideia de um Deus Criador, de um Deus Vivo que atua na História, que se revela e se encarnou para a nossa salvação. O pensamento moderno é, como sempre foi, intrinsecamente contrário até ao modo de compreender a ética e a política da Igreja desde sempre.


               Propondo tal contaminação, João XXIII agiu como discípulo do "método" da Nova Teologia neo-modernista, também já condenado pelo Magistério. Para responder verdadeiramente às necessidades de nosso tempo, relativas à missão de salvação da Igreja Católica, o CVII deveria ter aprofundado as condenações perpétuas decretadas pelos Papas anteriores ao pensamento moderno (de Pio IX a Pio XII), em vez de abandonar ao pensamento moderno "o estudo e a expressão" da "autêntica" e "antiga" doutrina.


    Erro 3: a finalidade da Igreja seria a "unidade do género humano.


    O terceiro erro consiste em considerar a unidade do género humano como a finalidade própria da Igreja: "Eis o que se propõe o II Concílio Ecuménico do Vaticano... ele prepara de algum modo e aplaina a via que leva à unidade do género humano, fundamento necessário para fazer com que a Cidade terrestre seja a imagem da Cidade celeste 'que tem por rei a verdade, por lei a caridade e por medida a eternidade' (cf. Sto. Agostinho, Epist. 138, 3)".


    A unidade do género humano é aqui considerada como fundamento necessário para fazer com que a "Cidade terrestre" se pareça com a "Cidade celeste"; eis aí mais um diretiva radicalmente nova e estranha ao que sempre foi ensinado na Igreja, tanto mais porque a unidade do género humano é uma ideia-chave antropoteísta elaborada a partir do século XVIII, nunca do Cristianismo. Mistura-se à visão católica uma ideia que lhe é estranha e mesmo contrária, tirada do pensamento leigo, algo que a nega e a contradiz em essência. É um pensamento que não visa anunciar o Reino de Deus, à semelhança do que a Igreja visível deve realizar na Terra, mas substituir a própria Igreja pela humanidade, com a convicção da dignidade do Homem enquanto Homem (visto que o pensamento moderno já não acredita no Pecado original) e dos seus pretensos "direitos".


    E como costuma acontecer com os conceitos absurdos e contraditórios, os efeitos negativos da falta de condenação dos erros se fazem sentir já própria alocução que a propõe(!), porque ela mesma contém  erros que teriam sido condenados pela Igreja de sempre, em todos os seus Papas.

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