Quais são, afinal, os erros do Concílio Vaticano II?

Diante do caos doutrinal, moral e litúrgico instalado na Igreja após o Vaticano II, é possível ainda pensar em 'hermenêutica da continuidade'?

“Escuto muito falar que o concílio Vaticano 2 foi ruim e fez um estrago enorme na igreja, mas eu não consigo saber que erros seriam esses, porque a secretária da minha paróquia é uma freira [e] ela falou que esse concílio foi uma grande primavera na igreja. Sei que eu tenho visto muita coisa errada acontecendo vocês poderiam tirar a minha dúvida mostrando qual é o erro do Vaticano II?”


PARTINDO DA COMPLICADA PREMISSA de que podemos, enquanto leigos, criticar e submeter ao nosso crivo particular um concílio legítimo (?) da Santa Igreja Católica, algo que em tempos normais não seria possível de modo algum, mas que se torna possível nestes dias de exceção da grande apostasia que estamos vivendo, consideramos válido oferecer a tantos que nos fazem a mesma pergunta o esclarecimento dessa questão fundamental.


A leitora Marcília é uma dentre muitas que nos procura querendo saber a mesma coisa: quais são os erros do Vaticano II? Em primeiro lugar é preciso dizer que este assunto é muitíssimo amplo e complexo, de modo que seria possível escrever um ou alguns bons livros a respeito, como de fato muitos autores já se dispuseram a fazer. A propósito, recomendamos a leitura da obra de Michael Davies, a começar por “O concílio de João XXIII” e “A missa nova de Paulo VI”, passando por “A reforma litúrgica de Cranmer” até “Bombas-relógio litúrgicas no Vaticano II”.


Feitas essas considerações iniciais, passemos às nossas explicações, nas quais tentaremos ser tão didáticos quanto possível, usando das palavras mais simples, já que o nosso objetivo por aqui é falar a todos, lançando luz sobre o que é obscuro: essa é propriamente a função do nosso apostolado.


Em primeiro lugar, é importante entender o problema da ruptura com a sagrada Tradição da Igreja e com o santo Magistério em tudo o que havia ensinado até antes do Vaticano II. Alguns tentam defender que uma "hermenêutica da continuidade" é possível, outros afirmam que não. Encontrar essa resposta é fundamental, porque se houve mesmo uma ruptura, temos um seríssimo problema que precisa ser sanado, sob a pena de uma multidão de almas se perder no Inferno. Para esclarecer este ponto, tomaremos como referência o artigo do revmo. Pe. Luiz Cláudio Camargo para a ed. 273 da revista Permanência, no qual comenta o livro do popularíssimo Pe. Paulo Ricardo de Azevedo Júnior, intitulado “Vaticano II; ruptura ou continuidade?” [Ecclesiae, 2009].


Consideramos interessante esta abordagem pelo fato de o ser o célebre “Padre Paulo Ricardo” uma das maiores referências católicas em todo o Brasil, sendo que suas conferências e aulas em vídeo, assim como seus cursos, são geralmente bem conhecidos do público em geral. De fato, os seus pontos de vista são tomados como verdades absolutas por uma parte importante do nosso laicato. Antes de iniciarmos as nossas considerações, queremos deixar claro que nosso intuito por aqui é o esclarecimento, e o nosso compromisso com as verdades eternas confiadas à Igreja; queremos luz e não polêmicas: nosso intenção é propor uma reflexão honesta e saudável, não controvérsias superficiais. Queremos entender a questão e não criticar pessoalmente a quem quer que seja. Prossigamos, pois.



Introdução


No Brasil, a resistência católica ao modernismo reinante sempre foi muito tímida. A superficialidade de formação e de caráter dos brasileiros em geral – e dos católicos em particular –, foi sempre a raiz do desinteresse pelos graves desvios da vida católica. Quando muito, encontramos certo interesse religioso associado e/ou secundariamente derivado de preocupações políticas, ou causado por este ou aquele grave escândalo moral envolvendo um padre ou bispo. Desgraçadamente, a situação piora a cada dia que passa: mais e mais, vamos passando a achar muito "normais" os piores absurdos, as mais pavorosas profanações e ultrajes a Nosso Senhor e à santa Igreja.

    Um grande e honrado bispo brasileiro, que se tornou verdadeiro herói da Fé, chamou-se Dom Antônio de Castro Mayer: seu exemplo configura-se em uma exceção, mas foi cuidadosamente escondido na conspiração de silêncio empreendida em conjunto pela maioria dos outros bispos e pela imprensa nacional. Por desgraça, a admirável obra que empreendeu, conseguindo manter católica sua diocese, mesmo em meio a todo o caos e às perseguições aos bons clérigos empreendidas pela alta hierarquia da Igreja após o Concílio, não fez escola no Brasil. Por desgraça ainda maior, o seu clero, que durante anos lutou valentemente, por fim não resistiu e tombou. 

    Em paralelo com essa grande figura episcopal, digno representante da classe sacerdotal, a Providência concedeu ao Brasil também um grande herói leigo: o professor Gustavo Corção. E se o paralelo é exato com relação á defesa da Fé, também é exato no silêncio criminoso com que a imprensa esquerdista brasileira o escondeu. Graças a Deus, seu exemplo continua de pé e nos alcança através de suas obras. 


    Infelizmente também é verdade que o estandarte erguido por esse Bispo e por esse leigo modelares, ainda que por milagre permaneça hasteado, não pode ser visto de longe, de tal maneira encontra-se cercado por poderosos e violentos inimigos que ocuparam praticamente todas as principais posições em todos os ambientes eclesiais. 

    Citamos esses dois casos de luminosos exemplos, mas, é claro, a divina Providência nos ofereceu muitos outros heróis da Fé que se recusaram e continuam se recusando a se dobrar diante da ameaça, da fera que ruge e aumenta suas forças, cercando implacavelmente sua presa. Neste exato momento, temos grupos e movimentos católicos que não fogem à guerra, tentando fazer a sua parte e resistindo bravamente, mas... o que ocorre agora é um problema ainda muito mais sério: entre essas iniciativas dos ditos católicos “tradicionais” ocorrem divisões e subdivisões, a partir do orgulho humano e de uma falta de humildade que é geral, com sectarismos que não param de aumentar e que representam agora, talvez, o nosso maior obstáculo.

    Ao invés de, irmanados e cada vez mais unidos, lutarmos em socorro do Catolicismo autêntico, combatemos o que luta ao nosso lado (ou tenta, ao menos com boa vontade), agredindo-nos uns aos outros. Porque há diferentes opiniões, como não poderia deixar de ser, já que  por maior desgraça a revolução conseguiu ocupar também o Trono de Pedro e, estando ferido o pastor, as ovelhas se dispersam. Assim é que seria, inevitavelmente. Que isso acontecesse, era de se esperar , e foi assim mesmo que profetizou Sua Santidade, o Papa Leão XIII, em sua oração de exorcismo: "Ali onde está constituída a Sede do beatíssimo Pedro e a Cátedra da Verdade para iluminar os povos, ali colocaram o trono de abominações de sua impiedade, para que, ferido o pastor, dispersassem-se as ovelhas"[1].

    Ainda nos começos dessa situação dificílima, tivemos a vinda da Fraternidade São Pio X para o Brasil, que viu todas as suas ações atravancadas por dificuldades e o cruel isolamento com que sempre foi tratada a resistência católica. Hoje, ganha força cada vez maior o movimento refratário ou sedevacantista (sobre o qual já tratamos aqui), que por motivos mais do que razoáveis já não reconhece a legitimidade de Francisco-Bergoglio como autêntico Papa da Igreja.

    Diante de um quadro tão trágico, quando o Pe. Paulo Ricardo de Azevedo Jr. começou a aparecer nas mídias como um digno representante do clero, um verdadeiro sobrevivente da grande tragédia, que afirmava a verdadeira Doutrina no meio de todo esse deserto intelectual católico, tivemos um alento de esperança. Vimos até com indulgência a sua defesa do Vaticano II, ainda que isso sempre parecesse um tanto quanto contraditório. Parecia, visto de longe, um desejo legítimo de salvar a autoridade papal, aliado a uma atitude de reverência à hierarquia eclesiástica e um desejo de não se unir ao espírito de contestação e desobediência tão próprio do clero moderno. Mas o Pe. Paulo Ricardo insistia sempre em tentar justificar "catolicamente" os lamentáveis erros do Vaticano II. E com as suas inegáveis qualidades de orador, sua simpatia e seu ótimo poder de síntese, arrastou com ele, por esse mesmo caminho, uma multidão dentre os chamados "tradicionalistas".

    


    Sempre recusamos qualquer ataque ou polêmica a um padre que, mesmo sem nunca chegar até as últimas conclusões ou assumir todas as consequências por isso, lutasse pela mesma defesa da Fé católica como nós. Preferimos não parecer dar razão aos “padres de passeata” que atacaram e continuam atacando de modo tão vil o mesmo sacerdote. Mas torna-se impossível continuar  ao seu lado quando vemos certas atitudes contraditórias suas, como por exemplo dizer que, ainda que exista a possibilidade de que o Terceiro Segredo de Fátima contivesse alertas quanto ao perigo do Vaticano II, saber isso "nada acrescentaria ao debate"(!) (ainda que ele reconheça que estamos vivendo já a grande apostasia – veja meu artigo a respeito aqui), ou diante do texto de sua conferência sobre o Vaticano II, publicado em forma de um pequeno livro. 


    O livro em questão, intitulado “Vaticano II; ruptura ou continuidade?” [Ecclesiae, 2009], traz uma série de contradições gravíssimas, com equívocos que se amontoam a cada parágrafo. Aí não há uma "interpretação católica" dos textos conciliares, e sim uma reafirmação ou tentativa de justificação de todos os graves erros modernistas ali contidos e condenados tantas vezes pela Igreja.

    Bastaria citar o Denzinger e comentar as grandes encíclicas de Gregório XVI, Pio IX, Leão XIII, São Pio X, Pio XI, Pio XII contra o liberalismo e o modernismo, para demonstrar claramente os pontos em que a doutrina do Pe. Paulo Ricardo contradiz o ensinamento autêntico e constante da Igreja. É diante desse perigo de confusão e apenas para esclarecer, insisto uma vez mais, que consideramos importante apontar esses pontos equivocados em suas teorias, já que a figura do sacerdote em questão é muitas vezes apresentada como um perfeito modelo de ortodoxia e fidelidade ao pensamento da Igreja. Infelizmente, isso não é verdade. 


    Na conferência em questão, o Padre insiste várias vezes em dizer que sua posição não é “tradicionalista”, mas sim “conservadora”, e que essas duas posições não podem ser confundidas. Ele tem razão nesse ponto, mas entre o seu pensamento conservador e o da Igreja (doutrina transmitida dos Apóstolos a nós por ação do Magistério) há um abismo intransponível.


    O primeiro parágrafo da 1ª Parte do livro tem como título "O que é um concílio". Mas a definição prometida é substituída por duas simples afirmações: 1) o Vaticano II é essencialmente bom e importante; 2) este concílio é visto pela “esquerda” e pela “direita” de modos diversos. Essa segunda conclusão, que pode ser correta mas que não representa de maneira nenhuma o ponto principal da questão, será todavia o ponto central da conferência inteira, em todos os seus temas, como se a partir daí se pudesse resolver o problema. De fato, a sua conclusão final está já insinuada no seu primeiro parágrafo: devemos ter uma posição moderada diante do Vaticano II, ou seja, nem a posição da “esquerda", que o vê como se a Igreja tivesse sido "fundada a partir do Concílio”, nem a posição da "direita", isto é, a dos “mais tradicionalistas, que veem o Concílio como algo a ser condenado”.

    No título seguinte, "Hermenêutica da continuidade e hermenêutica da ruptura", a tese central está explicada e resumida. Afirma-se aí que os dois grupos extemos que atacam ou que defendem o Vaticano II têm, ambos igualmente, um erro em comum: o de lê-lo numa “hermenêutica de ruptura”, e que a posição correta seria a do Papa Bento XVI, de que o “Concílio Vaticano II precisa ser lido em uma hermenêutica de continuidade, (já que) as duas atitudes são nocivas, como uma união entre a esquerda e a direita para ler o Concílio a partir de uma ruptura".

    O princípio de que a doutrina católica tem perfeita unidade em si mesma e não pode ter contradição interna é verdadeiro e certamente fundamental. Não é possível negar hoje o que afirmamos como verdade imutável ontem. Poderíamos pensar que o apelo à “continuidade” fosse um modo de exigir a adesão à Doutrina católica ensinada desde sempre pela Igreja, e que o perigo de uma “hermenêutica de ruptura” estaria se referindo ao gravíssimo perigo de cair na heresia de separar-se da mesma Sã Doutrina. Mas, curiosamente, o celebrado autor faz referência a um outro tipo de unidade, qual seja? Não a unidade com a Verdade da Revelação, que é definitiva e imutável, mas sim com a “história da Igreja”. Mais adiante ele insistirá em que o mais importante é conservar a “vida da Igreja”, não a verdadeira Fé. Esse caráter existencialista foi sublinhado por São Pio X na sua Pascendi como uma característica do pensamento modernista.

    Antes de prosseguir em nossas análises, neste ponto cabe uma pergunta fundamental: como é que se poderia falar de "hermenêutica", afinal, em se tratando do Magistério autêntico da Santa Igreja? O próprio uso dessa palavra mostra que estamos diante de uma concepção diferente de Magistério, a qual só se tornou possível (?) justamente depois do Vaticano II. 

    Ora em Teologia a palavra hermenêutica se aplica à arte de interpretar corretamente os textos que oferecem dificuldade especial, seja pela sua antiguidade e linguagem arcaica, seja pela distância histórica e cultural, etc. De modo particular, refere-se à interpretação das Sagradas Escrituras. "Mas", como diz com propriedade o Padre Calderón, "o pensamento subjetivista moderno fala de hermenêutica para a interpretação de qualquer texto, pondo agora a questão não numa característica particular, mas sim na dificuldade geral que o homem tem para transmitir o seu pensamento. Um autêntico teólogo católico não pode aceitar que se fale em uma 'hermenêutica' dos textos do Concílio de Trento ou do Vaticano I, por exemplo, porque são textos sempre atuais que fazem precisamente a interpretação autorizada da Tradição, no que esta tinha necessidade de ser explicada. Se para ler Trento, que faz uma hermenêutica da Tradição, o teólogo precisa aplicar uma arte especializada para poder interpretá-lo, isso que dizer que o leigo comum terá que fazer uma outra 'hermenêutica' da interpretação do teólogo? [Uma 'hermenêutica da hermenêutica'?] Quer dizer, então, que nunca ninguém pode falar claramente a mesma linguagem? É exatamente isso o que pensa um moderno subjetivista, mas está gravemente equivocado” [2].

    O que o Pe. Calderón esclarece aí, com total razão, é que o Magistério detém o poder da Igreja para explicar (fazer hermenêutica) da Revelação, especialmente contida nas Sagradas Escrituras e na Tradição, explicação esta que é feita sob a Autoridade dada a ela por Nosso Senhor Jesus Cristo. Esta é uma das principais missões e, portanto, um dos principais poderes da Igreja: ensinar de modo infalível a Doutrina revelada por Deus aos homens, para a nossa salvação. Não é possível que a explicação que a Igreja faz precise de explicação! Precisamos apenas de docilidade para aceitar aquilo que nossa "Mãe e Mestra", a Santa Igreja, ensina. Enfim, não é possível que cada fiel tenha que se tornar juiz e mestre do Magistério da Igreja, por meio de uma hermenêutica particular.

    Esta é, no entanto, uma das teses centrais desta conferência e do pensamento comum do grupo adepto de uma posição teológica que surgiu frente à grande apostasia ou grande crise atual, denominado "Reconhecer e Resistir" (RR – saiba mais): que se faça uma “hermenêutica da continuidade”, e o livro do Pe. Paulo Ricardo é uma resposta a esse pedido. Mas só se pode entender e aceitar tal proposta considerando-se uma  noção de Magistério diferente daquilo que a Igreja desde sempre ensinou e definiu.


__________
[1] Para acessar a íntegra, acesse: 
https://tvnossasenhoradefatima.com.br/2020/03/exorcismo-contra-santanas-completo-do.html
Acesso em 31/8/2022.

[2] CALDERÓN, Álvaro. Prometeo. La Religión del hombre. Rio de Janeiro: Rio Reconquista. 2010, p.14.

Um comentário:

  1. Texto claríssimo e totalmente esclarecedor, me tirou muitas dúvidas!!! Obrigado

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