Onde estão os verdadeiros fiéis católicos, hoje?


A GRANDE CRISE ATUAL da Igreja ou, muito provavelmente, a grande apostasia que estamos vivendo em nossos tempos, trouxe à sociedade realidades radicalmente diferentes de tudo o que costumava haver antes. Por si só, a multiplicação dos estudos, com a facilitação do acesso às informações e os diversos cursos online oferecidos ao leigo católico (como o nosso), com o consequente aumento dos conhecimentos relacionados à Fé, gera elucubrações, discussões, desenvolvimentos, análises e aprofundamentos sempre renovados, partindo de grupos diversos, coerentes ou não, e uma multiplicidade de opiniões. O problema é que essas opiniões se formam tanto em relação aos objetos questionáveis da Religião quanto, em muitos casos, àquilo que a Religião tem de inquestionável, definido e eterno.

    Discute-se, por exemplo, se é pecado ou não determinada atitude ou comportamento, como ouvir tal música, assistir tal programa, vestir tal tipo de roupa. Assuntos assim são controvertidos, geralmente sujeitos a argumentos a favor e contra; logo, são problemas que admitem opiniões. Mas discute-se também, por exemplo, sobre o Concílio Vaticano II e a adesão dos católicos a este, e isso é matéria de Fé, na qual os critérios já são dogmáticos e, na sua argumentação mesma, tenderão a posições definidas, certas ou erradas. 

    Ocorre frequentemente que opiniões livres são vistas como dogmas e, ao contrário, temos os dogmas sendo discutidos como se estivessem sujeitos às diversas opiniões. Desvios assim acontecem porque as discussões, muitas vezes superficiais, apesentam-se camufladas sob um linguajar pomposo e aparentemente "douto" e muito "teológico", o que causa a impressão de que se tratem de coisas sérias. Deixa-se de lado o objeto formal da Fé, que é a Autoridade de Deus enquanto Revelador da Verdade, para se considerar aspectos circunstanciais, secundários. Tratam-se de enunciados da Fé, ou seja, suas fórmulas, numa erudição artificial, sem profundidade e sem a visão sobrenatural.



Opinionismo


O direito de todos a dar opinião, discordar, escolher isto ou aquilo, e a valorização extrema dessa liberdade de formar opiniões... são características marcantes do nosso século. Observa-se, com efeito, um aumento significativo da propaganda oferecida àquilo que cada um "acha". Com que facilidade a juventude descarta e desperdiça a preciosa sabedoria acumulada dos mais velhos – incluindo seus pais, que os amam e só lhes querem o bem –, para ficar com a sua própria impressão indecisa sobre todas as coisas!

    Essa facilidade em opinar já fora constatada por Gustavo Corção em seu primeiro livro, "A Descoberta do Outro". A parte central deste seu valoroso ensaio consiste em devolver à inteligência e à razão o seu justo domínio sobre as opiniões. Depois de descrever uma familiar guerra de opiniões, Corção procura pela razão interior que leva as pessoas a disputar com tanto afinco pelo simples prazer de “ter razão” em tudo. E conclui: “A opinião é uma atitude que o sujeito toma diante do objeto, sem que o objeto importe… Ter razão importa, sem que o objeto importe”[1]!

    Corção tratou então da atrofia de três sensos, os quais definiu bem:

 – • A diminuição do senso da objetividade gera o subjetivismo, o liberalismo e as correntes filosóficas idealistas, todas voltadas para o sujeito, para a opinião, para as coisas passageiras e móveis;

 – • A atrofia do senso lúdico ou senso da eternidade é o que substitui a contemplação da infância pela função social, pelo fazer, pelo utilitarismo: “A ação se intromete e destrói a contemplação; o fazer subordina o ludus”;

 – • A deformação do senso de altruidade ou do senso de altruísmo deforma o amor e gera a filantropia, o humanitarismo e a solidariedade assistencialista. “Foi proposta uma fraternidade sob a singular condição de não se falar em paternidade”.


    Dom Lourenço Fleichman resumiu bem a questão, em seu artigo para a revista “Conhecimento Prático de Literatura” (n. 30), dizendo: "O mecanismo da opinião pode ser descrito como uma interposição da vontade entre a inteligência e o objeto [lembremos que a verdade é a adequação da nossa inteligência ao objeto conhecido]". 


    Bem, Gustavo Corção estabeleceu as causas principais para este aumento do domínio das opiniões: subjetivismo, liberalismo, idealismo. Ora, qual a religião que se baseia exatamente nessa linha? Existe uma religião da opinião? A resposta é sim: o protestantismo, com o seu livre-exame.

    O mundo moderno é movido por esse espírito da opinião que, em termos de religião, espalhou-se pelo mundo com a religião protestante, justamente por causa dessa facilidade de examinar tudo por conta própria, valorizando-se sobre-tudo as próprias impressões a respeito de todas as coisas, descartando qualquer autoridade. Isso nos deixa a todos, cada um e qualquer um, com total "liberdade" para opinar sobre absolutamente tudo.

    Surge uma troca constante de opiniões, que será necessariamente superficial, porque parte do princípio de que são as vontades e impressões subjetivas do homem, e não a sua inteligência, que elabora o pensamento; valoriza-se e coloca-se no centro de tudo o sujeito que pensa, ou seja, o sujeito que “acha”, e não o objeto em si. Desse modo, já não conta mais a Revelação, o Dogma, a Verdade revelada, mas sim aquilo que brota de dentro do sujeito, ainda que sem nenhum fundamento sólido. E, como "em cada cabeça uma sentença", o passo seguinte é aceitar-se tudo, é colocar-se a liberdade religiosa (leia-se a 'liberdade' para escolher o erro e o engano ao invés da Verdade revelada) como um princípio absoluto, mais importante inclusive do que aderir aos antigos dogmas definidos pela Igreja. E assim, é possível termos hoje um "papa" que diga que tentar converter os povos é um pecado, porque todos têm o direito de "achar" o que quiserem. Do mesmo modo é também possível que os novos bispos digam que evangelizar não significa mais anunciar o Evangelho da salvação, mas sim apenas promover obras assistencialistas, respeitando e aceitando toda religião e cultura como tão dignas e válidas quanto aquela que Deus mesmo confiou à sua Igreja. E é também por isso que tanto se quer descentralizar o poder na Igreja, para que nunca mais se corra o risco de surgir um Papa santo que possa, fazendo uso do poder que lhe deu Cristo, restaurar a ordem das coisas.


    Por isso, ao debruçar-se sobre as realidades da sua Religião, todo católico deve estar atento ao espírito com que a estuda. Se essa grande apostasia ou grande crise da Igreja é uma condição que obriga todos a aprofundar os seus conhecimentos da Sã Doutrina, e do Direito canônico, da liturgia, da história da Igreja, etc., também não se deve abusar dessa condição, achando que tais estudos possam ser feitos sem orientação e sem o auxílio da Tradição e do Magistério, se possível na pessoa de um fiel e confiável sacerdote (onde estão eles?..), como se todos detivessem o discernimento necessário para orientar seus próprios estudos.

    O grande, imenso, tremendo problema é que as almas estão sendo abandonadas pelos padres e pelos bispos, desde o Concílio Vaticano II até hoje, e essa situação só piora. Desde esse evento catastrófico,  a Graça de Deus tem permitido que algumas almas privilegiadas mergulhem em estudos mais profundos, solitários, sem padres nem paróquias, pois estes foram completamente contaminados pelo progressismo. Foi assim que ganharam importância fundamental na defesa da Fé movimentos como o "Itinéraires", na França, ou o "Sisi, Nono" na Itália, em Roma e na Argentina, e diversos outros, espalhados pelo globo terrestre. Enquanto Dom Lefebvre e Dom Antônio de Castro Mayer lutavam bravamente, grupos leigos se organizavam pelo mundo. No Brasil, o citado Corção foi uma dessas inteligências privilegiadas, que despontava logo no início de todo o caos. Fundações como a Permanência surgiram devido a essa extrema urgência de escapar da influência dos bispos e padres que começavam a, literalmente, destruir a Fé dos fiéis, obrigando-os a aderir aos erros do Vaticano II.


    Falando de padres e bispos, o que ocorre é que, desde então, os poucos e corajosos defensores da Fé de sempre têm sido impiedosamente perseguidos, vivem acuados, agindo como podem para não abandonar a Verdade e para continuar ensinando a real Sã Doutrina. Muitas vezes são expulsos de paróquias, perdem cargos importantes, sofrem penas injustas e absurdas. Essa inacreditável perseguição continua por seis décadas, levando muitos a abandonarem as fileiras dessa justa resistência com medo da excomunhão.

    Surgiram assim os chamados neo-conservadores, aqueles que fugiam de Ecône, por medo e insegurança, mas pretendiam manter a Missa de Sempre e continuar ensinando o verdadeiro Evangelho em suas pregações, como se isso fosse o suficiente.



Autodidatas da Fé


Voltamos à situação dos leigos. Quem são os verdadeiros fiéis católicos, no meio de todo esse caos? Até que ponto vai essa real e legítima necessidade de proteger a Fé que nos toca hoje – a partir de um mundo que é declaradamente nosso inimigo mortal, e diante de um projeto de Igreja que simplesmente não nos tolera?

    Hoje, a internet aproximou continentes e pessoas; quase ninguém mais se sente completamente isolado e privado de acesso aos bons conhecimentos; hoje, a Fraternidade São Pio X tem espalhados seus padres pelos cinco continentes; hoje, diversos grupos sacerdotais ou laicais tentam fazer o mesmo que Dom Lefebvre fez no início, lutando e resistindo, além de uma ala crescente, que partiu para uma fidelidade radical ao Evangelho e fez a opção que, reconheçamos, seria inevitável que alguém fizesse nestes tempos: deixou de reconhecer a autoridade dos homens que ocupam os mais altos postos na hierarquia eclesiástica, em razão da sua contumácia no ensino de heresias. Estes últimos são muitas vezes chamados "apóstatas", mas não se pode deixar de considerar, se formos honestos intelectualmente, que, certos ou não, ao fim e ao cabo estejam eles combatendo, como podem, a verdadeira apostasia.


    Podemos então – nós, leigos –, pretendermos tomar para nós o controle de um apostolado que não nos cabe, de uma missão que não nos foi transmitida, como se não houvesse padres e bispos para fazê-lo? A resposta não é tão difícil como possa parecer à primeira vista, embora é claro que também não seja simples. A Fé sobrenatural é que regula a aproximação filial aos fiéis pastores, para receber do sacerdote ou do bispo a condução segura, mesmo se exista alguma reserva prudencial quanto às suas pessoas. Todavia a situação agravou-se a tal ponto que, hoje, há uma multidão que realmente não tem acesso a um pastor no qual possa minimamente confiar. É triste, mas é fato! Assim, essa submissão pacífica dos fiéis diante dos seus pastores fica nada menos que impossível, e o leigo se vê obrigado a lutar com as suas próprias forças para não sucumbir, suplicando a Deus que lhe restitua um padre digno, um bispo fiel, um papa católico(!) ou ao menos um diretor espiritual a quem possa confiar a segurança de sua alma.

    Claro que há perigo aí. Porque foi pela instituição do Sacramento da Ordem que Deus separou estes homens do meio do povo, para que fossem “intercessores entre Deus e os homens”, como disse São Paulo Apóstolo aos hebreus. Ao perder acesso aos padres, impedidos pela terrível situação de lhes dar a sua colaboração e submissão cega, extraviando-se dessa segurança que o Cristo quis dar à sua Igreja, muitos leigos da Tradição entram, sem perceber, no mundo protestante do livre-exame. Não o livre exame das Escrituras, mas dos documentos da Igreja, dos Concílios, da Tradição, das vidas dos Santos...

    E assim, de duas coisas, ocorre uma: ou eles se acham no direito de crer e/ou ensinar o que bem querem, ou fazem da espada seu meio de vida, combatendo contra tudo e contra todos, sem confiar mais em absolutamente ninguém; assim como não aceitam mais os padres apóstatas e laicizados do Concílio, rejeitam igualmente aqueles formados por Mons. Lefebvre, outros que corajosamente tentam manter a fidelidade apesar de tudo, e aqueles que agora lutam solitariamente, como guerreiros acuados, contra a apostasia generalizada.


Sou realmente um católico da Tradição? O que significa isso, mesmo?


O que deve, portanto, significar de modo profundo e sobrenatural, o termo Tradição? Tem algo a ver com participar da FSSPX? Ou com a luta para, apesar de tudo, manter o direito de assistir à Missa de Sempre? Rezar o Rosário em latim? Mulheres usando véu na igreja? Combater o Vaticano II?

    Nada disso nos faz fiéis à Tradição. Esses "conservadores" que destilam opinionismos na internet, de todos os tipos, quase sempre arrogantes e falsamente obedientes, resvalando nessa "religião da opinião" tão semelhante ao protestantismo, podem se pretender católicos da Tradição? Vejamos.


    
O católico da Tradição é aquele que...

 – ...em tudo, age pela Fé sobrenatural: “Meu justo vive da Fé” (Gl 3,11).

 – ...baseia seu conhecimento naquilo que é verdadeiro, infalível e profundo, buscando a coisa como ela é, na sua realidade e não nas opiniões particulares que, subjetivamente, formam-se no coração dos homens.

 – ...fortalece seu espírito na virtude teologal da Esperança, ao se deparar com os graves erros atuais, inclusive quando são difundidos por Roma; não tentam esconder nem disfarçar esses erros, não os justificam, não dizem coisas como "a imprensa distorceu o que disse o santo padre", e nem "o que o papa realmente quis dizer foi...", preferindo considerar, com a Imitação de Cristo, o que foi dito e não quem o disse. Não, não é melhor errar com o Papa: é sempre melhor acertar com Cristo, e na maior parte dos casos, hoje, é coisa bem simples diferenciar o que ensina um e o que ensinou o outro. Não se pode, sob a desculpa da obediência, aceitar quem contraria o próprio Deus e chega a nos encorajar a desobedecer os seus Mandamentos, seja quem for.


 – ...prova seu amor e seu zelo pela Igreja pela fidelidade a Nosso Senhor, chegando a dar sua vida por Ele, se necessário for. Não se importa com as duras perseguições que sofre ao denunciar o erro, mas une-se ao Crucificado, na Paixão da Igreja.

 – ...estuda a Doutrina e os eventos relativos à crise da Igreja na sua profundidade, mas sempre com verdadeira humildade e em espírito de obediência, perguntando-se contantemente se conhece de fato o que é essencial, não apenas questões secundárias. Jamais passaria pela cabeça de um católico da Tradição fazer chacota, piadas ou "memes" com os escândalos que nos massacram, como fazem alguns "conservadores" superficiais. Isso é, de fato, um sinal de que não são verdadeiros católicos da Tradição: se sua mãe fosse violentada e espancada, será que também brincariam com isso?

 – ...reza sem cessar, confiando a Deus o seu cuidado e oferecendo a Ele os seus sofrimentos, pedindo que lhe venham as graças necessárias para perseverar na Verdade acima de tudo, guardando-o da superficialidade e do subjetivismo.


*
*        *

    Seguem aí algumas diretrizes, que, é claro, não esgotam problema tão difícil e tão amplo. Importa, resumindo tudo, que o católico desenvolva em sua alma a essência do Catolicismo, a Fé verdadeira fundada na Verdade, que é Cristo, e o amor perfeito de quem entrega a vida pelo mesmo Cristo Crucificado e por seu Corpo Místico. Ao contrário do que diz o papa atual, nossa única certeza não é a de que "somos todos filhos de Deus". Temos, isto sim, a certeza de que o Inferno não prevalecerá sobre a verdadeira Igreja e que o Imaculado Coração de Maria triunfará. Porque, como disse Santo Atanásio, "ainda que os católicos fiéis à Tradição se reduzam a um punhado, são estes a verdadeira Igreja de Cristo[2].



___________
Adaptado do artigo "Conservadores ou Católicos?", de Dom Lourenço Fleichman, disp. em:
https://www.permanencia.org.br/drupal/node/2016
Acesso 2/1/2023

[1] CORÇÃO, Gustavo. A Descoberta do Outro, cap. Gostos e Opiniões, Agir, 1944.

[2] 
SANTO ATANÁSIO, Carta ao meu rebanho, séc. IV.



3 comentários:

  1. Se me permite, prof. Henrique, esse artigo é do tipo que o sr. faz de melhor. Quando eu vi, já me deliciei antecipadamente, antes de começar a leitura. Longo, um pouco, mas li tudo de um só fôlego, e fiquei muito satisfeito. Escreve muito bem sobre essa grande crise e as suas posições são muito equilibradas. Concordo, deve ser a grande apostasia. Viu o papa defendendo abortistas? Só pode ser isso mesmo.

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  2. Magistral. Que Deus nos ajude nessa luta ! Que prazer colaborar com esse apostolado.

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  3. Deus abençoe a todos os que me sustentam neste apostolado, tanto espiritualmente quanto materialmente, participando da formação que aqui ofereço. Sou muito grato pela imerecida oportunidade que me dá a Graça divina.

    Fraternidade Laical São Próspero

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