Qual a melhor Bíblia de estudos? – Parte 9 (final): A "Bíblia laica"

Este artigo é parte de nossa Formação Integral e Permanente em fascículos (conheça)

COM ESTA SÉRIE apresentamos o elementar da matéria em questão, abordando as principais edições das Sagradas Escrituras disponíveis em língua portuguesa. Quanto às diversas versões protestantes, mesmo que em alguns pontos e sob certos enfoques específicos possam ter virtudes, por motivos óbvios devem ser todas evitadas, a não ser estritamente para efeito de comparação entre traduções.

    Poderíamos citar ainda de passagem, e a título de curiosidade (já que recebemos uma pergunta a respeito), a controvertida tradução/edição do lisboeta Frederico Lourenço (foto), um pesquisador, linguista, professor e tradutor premiado, a partir de uma perspectiva meramente cultural e histórica, não confessional – a qual se tornou um best-seller na Europa e foi chamada por Diogo Vaz Pinto, jornalista seu conterrâneo avesso à Religião, de uma “prodigiosa blasfêmia” – isto não como crítica, mas como elogio.

    A ideia de Lourenço é tornar a Bíblia uma matéria de estudo desvinculado de qualquer tipo de espiritualidade ou busca pelo Sagrado, à semelhança do modo como se estudam a Ilíada e a Odisseia de Homero (já traduzidas, com méritos, por ele mesmo), e que as grandes universidades possam estudar, livres de qualquer “crendice” ou “dogmatismos”, desmistificando” os Textos tidos como Sagrados, resgatando-lhes apenas e tão somente a sua “materialidade linguística” vertida do grego koiné antigo.

    Segundo Francisco José Viegas, diretor da Quetzal (Grupo Porto Editora), responsável pela empreitada, “Não nos interessava publicar uma Bíblia stricto sensu, mas sim uma Bíblia comentada, linguisticamente trabalhada por um especialista como Frederico”. E completa dizendo que publicar a Bíblia é o sonho de qualquer editor histórico, bem lembrando que a própria arte da tipografia foi inventada para imprimi-la.

    A esse mesmo respeito, assinalou o Cardeal Tolentino de Mendonça[16], em defesa (!) dessa tradução laica, que:

[o desconhecimento da Bíblia não é] apenas uma carência do ponto de vista religioso, mas é uma forma de iliteracia cultural, pois significa perder de vista uma parte decisiva do horizonte onde historicamente nos inscrevemos. A Bíblia, que continua a ser religiosamente o vital repositório onde milhões de mulheres e homens buscam inspiração para a aventura da construção do sentido das suas próprias vidas, constitui uma espécie de chave indispensável à decifração do pensamento, imaginação e quotidiano, mesmo daqueles que nunca a leram, de tal modo ela está disseminada na cultura.

    Já o próprio Lourenço defende sua abordagem argumentando, com razão nesse ponto, que o Cristianismo do século XXI deve estar apto a aceitar que o rigor linguístico não é inimigo da Teologia, e muito menos da Fé: “A Bíblia não se torna menos santa por lermos nela o que realmente lá está escrito”[2], diz ele.

    Pois é, mas a razão do nosso linguista lusitano termina bem aí mesmo, a partir do momento em que a sua tradução, infelizmente, não traz aquilo “que realmente lá está escrito”. Escondido atrás de um eruditismo que o elevaria acima da categoria dos homens comuns, em sua tradução “descompromissada de crenças” ele vai optar por soluções completamente absurdas, e mesmo toscas, para não dizer evidentemente desonestas. Se não houve intenção maldosa por trás desses erros crassos, podemos dizer que estamos diante do trabalho de um descuidado trapalhão que, ansioso em mostrar ao mundo que ele não se enquadra na categoria dos pobres ignorantes que se deixam cegar pelas trevas da Religião, quer a todo custo nos apresentar algo “inédito” da Bíblia – algo que somente ele, em todos esses milênios, foi capaz de encontrar nos antiquíssimos Textos Sagrados.

    De muitas ocorrências verdadeiramente ridículas, basta citar que, em determinadas passagens, o autor optou por acrescentar (onde não existe e nem poderia existir) o artigo definido “um” antes do nome Espírito Santo(!). Não cabe aqui entrar nos pormenores da desonestidade que aí se encontra, porque basta citar a tentativa de se justificar do próprio autor para provar exatamente o contrário do que ele diz, e para entender o quanto sua atitude é descabida. Vejamos (as observações entre colchetes são nossas):

Quanto à questão que se coloca em relação a "um espírito santo" onde se esperaria ler "o Espírito Santo": quando os tradutores da Bíblia de King James (1611), tida como teologicamente incontestável em ambiente protestante (sic), traduziram Lucas 1:35 [o fizeram] do seguinte modo: ‘THE Holy Ghost shall come upon thee, and THE power of THE Highest shall overshadow thee; therefore also that Holy thing which shall be born of thee shall be called THE Son of God’
Repare-se nos artigos definidos que coloquei em maiúsculas. Nenhum deles está presente no texto grego, que não nos fala aqui em ‘o Espírito Santo’ nem em ‘o Filho de Deus’, visto que os artigos definidos estão ausentes da frase. É claro que, noutras passagens dos Evangelhos, lemos em grego ‘o Espírito Santo’ e ‘o Filho de Deus’; mas nesta passagem não temos, no texto grego, os artigos definidos. Qual é o problema de uma tradução como a da Bíblia de King James? É que transmite a quem não tem possibilidade de consultar o texto grego uma ideia errada daquilo que está, de facto, no texto. É indiferente a presença ou não do artigo definido? Teologicamente podemos dar como adquirido que não há diferença entre "o Espírito Santo" e "um Espírito Santo"? Não me compete a mim, como tradutor, partir desse princípio; mas apenas dar a ler o que está no texto [algo que ele simplesmente não fez]. Idealmente, devíamos traduzir para português a passagem acima citada do seguinte modo: ‘Espírito Santo virá sobre ti e poder do altíssimo te sombreará. Por isso, também o concebido <é> santo e chamar-se-á filho de Deus’ [aqui, sim, ele diz a verdade, contrariando o que tinha acabado de dizer!]. 
Convenhamos que ‘Espírito Santo virá sobre ti’ não é muito natural em português, já que para nós é natural "o espírito" ou "um espírito". Por isso, neste contexto(!), já que não seria correcto escrever "o Espírito Santo" (Por que não??) e fica estranho escrever ‘Espírito Santo’ sem qualquer artigo, a opção preferível será "um espírito santo".[3]

    Creio realmente que não se faz necessário acrescentar muitas explicações aqui. A própria tentativa de justificar o injustificável só ajuda a demonstrar o que já havia sido dito: ou malícia ou pura incompetência (o que é pouco provável), ou ainda o desejo incontido de trazer alguma “novidade” em uma tradução puramente “científica” da Bíblia. Ora, já que na passagem em questão o grego não apresenta o artigo definido, é óbvio, é mais do que claro e cristalino que a melhor solução é acrescentá-lo, já que em todo o contexto das Escrituras só há um Espírito Santo, como só há um Cristo Filho de Deus. Dizer “um espírito” só poderá sugerir – e sugerir indevidamente –, seja por pura soberba, estupidez ou desonestidade do tradutor (qual destas não podemos dizer) – que haveria mais de um Espírito Santo. É como dizer “um Apóstolo Paulo falou aos gentios...” ou “Um Pedro levantou-se dentre os Apóstolos...” nos casos em que não há artigo definido no original grego, que são muitos. Claro que uma tradução desse tipo, mesmo com o artigo ausente, não faz nenhum sentido, dada a obrigatória adaptação para o vernáculo segundo o contexto, que o próprio Lourenço reconhece como necessário para que a compreensão seja possível.

    Logo, note-se que todo o contexto das passagens em questão (como o próprio autor admite, em outras passagens desses mesmos Livros está presente o artigo definido para tratar das mesmas Pessoas divinas) obriga a acrescentar o artigo definido “o”, e jamais, de modo algum, o indefinido “um”. E, não senhor, não se pode dizer que acrescentar ali o artigo definido, como sempre fizeram todos os melhores e mais conceituados tradutores, em todos os tempos, é sinônimo de dar “uma ideia errada daquilo que está, de facto, no texto” . Ao contrário, dar uma ideia errada é exatamente o que Lourenço fez, ao acrescentar o artigo indefinido, que não somente não está no original grego, como também claramente vai contrariá-lo, inclusive em comparação com as outas passagens e com todo o contexto geral da obra: eis aí a realidade claríssima, patente, inegável e que independe da adesão religiosa para ser reconhecida. Se ele quisesse se apegar a um detalhe tão secundário para se afirmar como meticuloso, bastaria simplesmente suprimir o artigo, como ele mesmo reconhece que seria o mais correto, literalmente falando. Isso resultaria em uma construção de frase unusual, talvez estranha? Sim, um pouco. Mas dizer “Espírito Santo descerá sobre ti” é obviamente um milhão de vezes melhor do que dizer “um espírito santo descerá sobre ti”, já que esta última solução obviamente compromete o sentido do texto. Teria bastado a honestidade intelectual.

    Apenas para encerrar a questão, o mesmo Frederico Lourenço, no mesmo artigo em que procura se justificar, num bizarro espetáculo de incoerência e contradição, vai ainda desdizer o que acabara de afirmar, já no parágrafo seguinte da sua fala. Vejamos:

No entanto, é preciso dizer que este dilema do que funciona ou não com/sem artigo definido levanta-se constantemente na tradução para português da Bíblia, desde logo numa palavra que surge muitas vezes sem artigo em grego, mas que em português fica estranha sem artigo. Na resposta de Maria ao anjo, ela diz em grego ‘eis a escrava DE Senhor’ – e não ‘eis a escrava DO Senhor’. Em latim – língua que não tem artigo definido ou indefinido – estas frases ficam sempre bem: ‘ecce ancilla Domini’. Ao traduzirmos a frase a partir do latim sem conhecimento da frase grega, podemos subentender ambos os artigos: ‘eis a escrava do Senhor’; ou podíamos optar por ‘eis uma escrava do Senhor’.

    Ora, não é claro e evidente, não é óbvio e mais do que óbvio que mesmo sem o artigo definido é sempre mais correto traduzir por “escrava do Senhor” do que usar “escrava de Senhor”? Sim, e foi isso que ele fez. E Maria, como nessa passagem falava de si mesma, implica a tradução "eis aqui a escrava", melhor do que "uma escrava", como se falasse genericamente. Porque não usar a mesma regra ou a mesma simples coerência para o caso de “o Espírito Santo”, em vez do absurdo, ridículo e totalmente incorreto “um Espírito Santo”?

    Então, por fim, o que dizer de iniciativas como esta? Uma só palavra: ignore-as, estudante, e reze pelos que, consumindo esse tipo de material, confundem-se desnecessariamente. Mesmo assim, seja como for, os teólogos e os aspirantes a teólogos bem formados devem, na medida do possível, ter à sua disposição, para consulta, tantas versões da Bíblia quanto possível, ou pelo menos todas a principais. Todas elas nos ajudam a compreender tecnicamente as Sagradas Escrituras mediante o cotejo entre si e a confrontação com os escritos nos idiomas originais. Para a leitura piedosa, prefira as traduções da Neo Vulgata, como a da editora Ave Maria ou, especialmente, a tradução do Padre Matos Soares.


_____________
[1] José Tolentino Calaça de Mendonça, cardeal português de tendência progressista que é também poeta, autor premiado e atualmente arquivista do Arquivo Apostólico do Vaticano (Arquivo Secreto) e bibliotecário da Biblioteca Apostólica Vaticana, na Cúria Romana. (‘Bibliografia’, Livraria Wook de Portugal, disp. em: wook.pt/autor/jose-tolentino-mendonca/2332 acesso 13/8/2020) 

[2] ‘Quetzal Blog’, em: https://quetzal.blogs.sapo.pt/o-filho-da-humanidade-e-um-espirito-572077 Acesso 11/8/2020. 

[3] Ibidem.

5 comentários:

  1. Salve Maria.
    Prezado Henrique, se o fez perdoe-me, mas não me aprofundei nos artigos. Mas por favor, diga-me onde encontro no magistério ou canon o artigo que trata sobre a destruição dos impressos inadequados.

    Desde já, obrigado

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    1. Salve Maria! Acho que não entendi a pergunta.

      Fraternidade Laical São Próspero

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  2. Refiro-me às bíblias. Como descartar?
    Mas já encontrei a resposta no artigo 883. Obrigado

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  3. Muito obrigado pelo artigo crítico sobre esta edição. Só uma pergunta: no segundo trecho citado da justificativa tosca de Lourenço – "Não me compete a mim, como tradutor, partir desse princípio; mas apenas dar a ler o que está no texto (isso simplesmente não é verdade)" – a frase em parênteses é dele próprio, ou foi um comentário do autor deste artigo questionando a declaração de Lourenço? Se foi o segundo caso, sugiro colocar entre colchetes para deixar mais clara a intervenção.

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    1. Obrigado, Ivan. De fato, já estava avisado antes da citação que "as observações entre parênteses são nossas", mas vou seguir a sua sugestão.

      Fraternidade Laical São Próspero

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